CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 EVITAR GUERRAS À MESA
Publicado em: 09/12/2025
São as histórias que se contam à mesa que vão ficar na memória, muito mais do que quantas calorias tinha o que comeram nessa noite.



— Querida Filha, como estamos quase no Natal chegou o momento de contar às avós e às mães deste país a “experiência social” de que foste cobaia, tinhas então cinco anos e eu estava na Pais & Filhos — será que ainda te lembras? Refresco-te a memória: deixámos-te à solta num hipermercado com o teu amigo Sebastião, com carta branca para escolherem a vossa Ceia ideal e, vê lá tu, nenhum dos dois correu em busca de bacalhau, de um peru, nem mesmo de sonhos ou rabanadas...

— Mãe, são as avós que podem ter “brancas”, não as filhas — como é que me podia esquecer? Escolhi ursinhos de gelatina, como entrada, seguidos de uma pizza, e o Sebastião preferiu ovos (para estelar) e batatas fritas (de pacote). A seguir fomos para casa comer o nosso menu favorito numa mesa posta a rigor, com copos de cristal e talheres de prata, enfeites de Natal e velas acesas. Foi lindo.

— Ana, pensando melhor, talvez seja mais sensato não falarmos destas coisas em público, porque ainda me mandam prender, acusada de permitir que te intoxicasses com comida pouco saudável. E que ainda por cima engorda, num tempo em que estamos todos tão descontentes com o corpo que nos calhou em sorte. Mas, querida filha, a verdade é que a conclusão da experiência continua atual: se está a preparar a massa para as filhós ou a pôr o bacalhau de molho, entre queixumes de que os preparativos se destinam aos seus filhos que, ainda por cima, não só não agradecem como deixam metade no prato, tome consciência de que o faz por si — o que, aliás, é absolutamente legítimo!

— Mãe, gomas e salsichas à parte (também havia salsichas de lata na minha ceia!), o importante estava lá: divertirmo-nos, criámos ligações e memórias, o que aparentemente corre o risco de extinção (muito mais do que a comida). Nem de propósito, estive a ouvir a Esther Perel, uma das grandes especialistas em relações amorosas, a conversar com a Christiane Amanpour, no podcast The Ex Files, e ela comentava que nos EUA cerca de 75% da comida feita nos restaurantes é para ser consumida em casa. Provavelmente no sofá e sem companhia.

— Ana, para já, tenho a certeza de que assim engorda mais! Enfim, gostava de acreditar que ainda estamos longe dessa realidade, mas os últimos dados reportam que os portugueses convidam cada vez menos amigos e família para uma refeição em suas casas. E, no entanto, as entregas de comida pronta crescem...

— Mãe, volto à Esther Perel, porque ela põe mesmo o dedo na ferida quando diz que, na realidade, as pessoas estão secretamente desejosas de serem convidadas, convidadas a participar, seja numa refeição ou numa qualquer actividade, mas não tomam elas próprias a iniciativa de organizar e convidar. Por um lado, diz, porque estão muito centradas em si mesmas, numa era em que sentem que tudo lhes é devido, mas, por outro, porque temem ser rejeitadas. Pensam, “E se convido e me dizem que não?” Interpretam imediatamente como uma rejeição, e não querem arriscar ficar “nesse lugar”.

— Ai, minha rica filha, que idade tem essa gente? Parecem adolescentes! Se calhar, digo eu, não cultivam suficientemente as relações com os amigos. Não naquele sentido protocolar do “Se me convidas, também tenho de te convidar”, mas porque não confiam, não se entregam, não pedem (e oferecem) ajuda, mesmo que evidentemente o risco seja de sofrerem desilusões de vez em quando.

— Provavelmente alguns não cresceram, é verdade, mãe. Mas segundo percebo nestes tempos tão polarizados, também se procuram evitar guerras à mesa, mesmo dentro da família em que um irmão é, por exemplo, acérrimo defensor do Chega ou de Trump, e o outro está no polo oposto, e depois ainda há Gaza e Israel, para não falar nas discussões sobre a emigração.

— Pois, Ana, estou a ver o problema – sendo assim, realmente mais vale falarem sobre se as couves deviam ou não estar mais cozidas... Mas tenho uma proposta para os próximos jantares de Natal, numa versão menos deprimente do que a de um anúncio que anda a circular em que ninguém da família sabe nada uns sobre os outros. A minha proposta não é um teste, é um incentivo a que se aproveite o tempo que se tem com os avós, com os tios, com aqueles que já não vão cá estar muitos mais natais, para exercitarem a curiosidade, fazendo perguntas. Aquelas que anos mais tarde temos pena de não ter feito. Muito pesado para mensagem natalícia?

— De maneira nenhuma, mãe. De certeza que no futuro são essas histórias que vão ficar na memória, muito mais do que quantas calorias tinha o que comeram nessa noite, que felizmente rapidamente se varre da nossa mente. Bem, a não ser que sejam gomas em forma de ursinhos, esses são inesquecíveis!



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