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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
COMO A VIDA É IMPREVISÍVEL DEMAIS PARA A GASTARMOS COM COMPARAÇÕES
Publicado em: 29/04/2025
O que faz mal é mandar reels às nossas filhas sobre autoaceitação e passar os dias a comentar como odiamos o nosso corpo. E acreditarmos em metas impossíveis de maternidade e de humanidade.
Querida(s) Mãe(s),
Não faz mal terem o armário da casa de banho todo desarrumado. Não vai aparecer a polícia nem começar a trovejar.
Não faz mal terem roupa acumulada para passar a ferro ou roupa que ficou tanto tempo molhada que se tem de lavar outra vez.
Não faz mal que durante o primeiro ano (ou segundo ou terceiro) da vida do vosso bebé estejam menos sociáveis, menos arranjadinhas, menos disponíveis.
Não faz mal voltarem ao trabalho sem culpa, e até com alívio pelas horas fora de casa, mas também não faz mal se a ideia de deixarem o vosso bebé seja tão intolerável que reorçamentem a vossa vida para ficarem em casa.
Não faz mal se a vossa criança dorme agarrada a vocês, nem faz mal que tenha mudado para o quarto dela. Não faz mal se dorme a noite toda seguida ou se acorda várias vezes.
Não faz mal se ainda não conseguem namorar o vosso marido como dantes, nem se vê-lo como pai vos aproximou.
Não faz mal ter mais barriga, mais rugas, mais pele e não faz mal treinar para nos mantermos fortes e porque nos dá prazer.
Aquilo que faz verdadeiramente mal é vivermos todos os dias da nossa vida a achar que estamos erradas. A perder todos os momentos presentes a questionar e a comparar-nos com tudo e todos. O que faz mal é sentir profundamente que devemos ir buscar o nosso bebé ao berço, enquanto nos obrigamos a ouvi-lo chorar. O que faz mal é mandar reels às nossas filhas sobre autoaceitação e passar os dias a comentar como odiamos o nosso corpo. O que faz mal é acreditarmos em metas impossíveis de maternidade e de humanidade.
Bom Dia das Mães de carne e osso.
***
Querida Ana,
Recebi a tua carta, segundos antes do apagão, que veio comprovar tudo o que escreves: a vida é imprevisível demais para a gastarmos a martirizarmo-nos com comparações idiotas, impondo-nos objetivos que não são os nossos, a sofrer por antecipação. Imagina que passei os últimos dias angustiada porque não ia estar sol no próximo fim de semana em que o teu irmão e a família vinham a Portugal e, de repente, acontece isto, o voo foi cancelado e não há querido netinho para ninguém!
Desilusão à parte, e foi grande, estou de novo a escrever-te à mão com o entusiasmo de quem não tem outra forma de comunicar contigo senão por carta, isolada em casa, sem rede, com quase nenhuma bateria no telemóvel, nem acesso a qualquer tipo de informação, depois de uma criativa viagem de Lisboa a Sintra. Imagino-me a entregar esta carta a um “Pony Express”, um jovem montado num cavalo alazão que galoparia para a entregar-te, esperando pela resposta, conformada a um mundo que deixou de ser instantâneo. Em cima da mesa, os cadáveres inúteis do telemóvel, computador, comando da televisão, enquanto o L. tenta pôr a funcionar um rádio a pilhas, como se estivéssemos num filme.
Pronto, querida filha, sei que a minha reação dá direito a que alguém atire umas quantas pedras, classificando-a infantil e mimada, mas resulta da certeza de que há profissionais a tratar do problema o mais eficazmente e dedicadamente possível (a quem antecipadamente agradeço), e que por isso só me sobram algumas horas para procurar dar alguma emoção a esta surpresa que vem ao encontro daquilo que a maioria de nós anseia: uma aventura que inesperadamente corte a monotonia do dia a dia, de preferência com alguma teoria da conspiração à mistura para aumentar a parada. Estes choques de realidade comprovam que é patética a ilusão de que podemos ter tudo sob controlo, tal e qual como nas fábulas sobre a maternidade.
Bem, o símbolo do satélite continua no ecrã do meu telemóvel, a noite vem aí, perco a esperança de vos poder convocar para um jantar à luz das velas. Precisamos de comer tudo o que está a descongelar e esta era uma oportunidade única de criar uma memória para os meus queridos netos, daquelas que mais tarde podíamos recordar. Entretanto, já dei conta do gelado de café, que devorei enquanto lia um livro, sem remorsos por não estar a trabalhar!
Ana, agora muito a sério, espero que as mães colem a tua carta no frigorífico e se lembrem durante muito tempo do dia de hoje: a humanidade é espantosa e adapta-se a tudo, se nos tirarem os telemóveis, as consolas, as televisões, o que for, inventaremos sempre alternativas. Daremos um passo atrás, e depois dois à frente.
PS – Que desilusão quando a luz repentinamente encheu o quarto, desvalorizando as minhas velas. Estava tão bem a ler no lusco-fusco, a chama a iluminar exclusivamente a página, obrigando a uma concentração total, que desapareceu mal a eletricidade voltou e iluminou todos os cantos à casa, e abriu num flash mil alternativas de distração. Desliguei-a logo, não acendi a televisão e fui para a cama as onze da noite, coisa que não acontecia há séculos, e aqui estou eu de madrugada a passar a computador a carta que vou guardar em papel para te entregar em mão um destes dias.
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