CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 COMO SE DISCIPLINA UM TAMAGOTCHI
Publicado em: 15/04/2025
Não sei o que deu ao mundo, que oscila entre um extremo e o outro, raramente optando pela via do bom senso, algures no meio entre o autoritarismo e a ausência de limites.


Querida mãe,

A Martinha fez anos — dez anos! — e um dos presentes que recebeu foi um Tamagotchi. Lembra-se deles??? Um mini-computador que quando se liga pela primeira vez dá vida a um animalzinho eletrónico de que temos de cuidar para crescer saudável e não morrer. Lembra-se? Nunca mais me esqueci de que quando recebi o meu, sem querer formatei-o com as horas ao contrário, e ele passou a viver à noite e a dormir de dia. Não se calava de apitar toda a santa noite porque queria ser alimentado, entretido, banhado, etc.

Não sei se a mãe sabia que ainda existiam, mas, pelos vistos, voltaram a estar na moda e por isso agora tenho um a viver sob o meu teto. Vinha com instruções, mas, como pode imaginar, nem eu, nem ela tivemos paciência para as ler e só a meio da noite é que me lembrei de que podia morrer! A noção de mortalidade do pequeno bicho (ainda que eletrónico) deixou a minha filha preocupada, mas também mais comprometida. Mas ontem, depois de não sei quantos apitos que não paravam, perguntei-lhe o que é que ele tinha, e ela encolheu os ombros, não fazia ideia, já tinha todas as necessidades atendidas. Não havia forma de perceber o que queria, e havia um emoji que não sabíamos interpretar. Relutantemente fomos as instruções.

Comecei a ler: "Se o teu Tamagotchi apitar e não tiver fome, sono, tiver sujo ou quiser brincar, vais ter de o disciplinar!" (…) Oh, meu Deus… o Tamagotchi vem com a pedagogia da Rita Pereira.

Continuei a ler “(…) se ele não quiser nada, tens de carregar no emoji (o desenho de uma boca a gritar) porque senão ele vai crescer e transformar-se num extraterrestre feio e mal-educado.”

Pagava para que tivesse visto o ar de choque da minha filha. Teve horas a resistir a carregar no botão de gritar. Passado um bocado, perguntei-lhe “Já gritaste com o teu Tamagotchi para ele não ficar um extraterrestre mal-educado?” e ela respondeu-me “Não, mãe, cantei para ele! Decidi que o emoji da boca que parece gritar é para lhe cantar, porque acho que mesmo que não precise de tomar banho ou de comer, pode precisar só de uma música ou de companhia”.

E eu pensei que devo ter feito alguma coisa bem.

Beijinhos

***

Querida Ana,

Fiquei tão comovida com a resposta da tua filha, como chocada com a tecla dos gritos do Tamagotchi, com a subsequente profecia do que lhe sucederá se ninguém o puser na ordem. E orgulho-me muito da Martinha por ter encontrado uma alternativa ao autoritarismo e, claro, de ti, porque a educaste pelo exemplo.

A sério, Ana, não sei o que deu ao mundo, que oscila entre um extremo e o outro, raramente optando pela via do bom senso, algures no meio entre o autoritarismo e a ausência de limites. Porque se os senhores que fabricam os Tamagotchi decidiram lá colocar a “tecla dos gritos”, é porque os modelos de parentalidade que voltaram à moda — e de que as “influencers” são um sintoma — inclinam-se agora para essa versão de uma educação mais a ferro e fogo. E, o mais ridículo, é que pelos vistos os adultos que compram esses brinquedos querem que os Tamagotchi dos filhos justifiquem os seus gritos, numa variante do “É para o teu bem!”.

Podemos argumentar que as consequências de um modelo do “O menino quer, o menino tem” são tão evidentes que os novos pais querem dar um passo atrás, mas aí voltamos à discussão sobre se as “necessidades” de um bebé se resumem à comida e à fralda, e mais importante ainda, o que é “disciplinar” uma criança ou um Tamagotchi, e se educar passa por copiar o comportamento deles, abrindo também as goelas. Eu gritei muitas vezes convosco, por cansaço, por desespero, por impaciência, mas sentia-me muito mais orgulhosa de mim mesma se nessas situações tivesse sido, antes, capaz de vos cantar.

Ah, falta só retificar a tua memória: lembras-te do que fizeste ao teu Tamagotchi noctívago? Isso mesmo, vieste trazer-mo a meio da noite e pediste-me para o aturar! Fico à espera que a Martinha mais dia, menos dia, faça o mesmo — estou cheia de vontade de lhe cantar também.


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