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OUT
31
 
 ISABEL STILWELL: "PASSEI HORAS A OLHAR PARA O TÚMULO DE D. PEDRO"
A pandemia trouxe-lhe mais concentração e até visitas privadas a locais antes repletos de turistas. Para o seu décimo romance histórico, a autora escolheu novamente uma mulher, Inês de Castro.

Quando entregou a primeira versão de Inês de Castro, a história de amor de Pedro e Inês estava longe de ser o centro do livro. “Tive a sensação de que queria fugir ao romance, porque era a parte mais gasta da história, que tanta gente explorou e tão bem”, contou à SÁBADO. Um mês depois, a conselho da editora, sentou-se a melhorar esta parte. Escreveu o livro durante a pandemia e isso teve um lado bom, admite. “Foi o mais próximo que cheguei daquele ideal dos filmes em que o autor está numa casa da praia, só tem um cão ou uma mulher a dias, anda por todo o lado e escreve quando lhe apetece porque não há outros compromissos. Essa parte foi muito produtiva para a concentração. Por outro lado, faz falta a vida, para a criatividade.”


É o seu décimo romance histórico. Tem um método de escrita definido?
Primeiro faço a pesquisa, leio, leio, leio. Enquanto estou a ler construo uma grelha dos factos. Depois gosto imenso de visitar os sítios. Claro que a paisagem não é exatamente a de há 700 ou 800 anos mas, por exemplo, o horizonte é. O facto de D. Amélia ter crescido na Normandia, perto do mar, com nevoeiro. A árvore pode não ter lá estado naquele sítio mas a essência do lugar está e isso ajuda-me imenso. Apanho conchas e flores, seco-as nos sítios, gravo o som dos pássaros… Tudo isso me consegue inspirar muito para não ser uma história árida.

Foi fácil visitar os locais da História a meio duma pandemia?
Tive alguma limitação mas, felizmente, muitos sítios, sobretudo em Espanha, foram impecáveis Quando escrevi a pedir se podia visitá-los, apesar do confinamento e de estarem fechados, foram fantásticos. Estive em Albuquerque, no castelo onde Inês esteve no exílio e foi criada.

Teve visitas privadas, só para si?
Sim, estar em Sevilha sozinha no Alcázar é uma experiência única. E como ainda por cima o contexto da Inês de Castro é o contexto da peste… Há tantas coisas que eu descobri no passado, por exemplo, os judeus tinham hábitos enormes de limpeza, que não tinham os cristãos. E quando as comunidades judaicas foram muito poupadas apareceram várias teorias da conspiração, que eles é que tinham envenenado os poços dos outros ou as carnes que eles comiam. Os medos, o não saber de onde é que aquilo tinha vindo, o contágio…Havia mosteiros onde, em 36 frades, morriam 35. D. Pedro não podia visitar Inês, que estava relativamente isolada, porque o rei Afonso IV mandou fechar os castelos e tinha atiradores para disparar a quem se atrevesse a sair ou a entrar.

Porque escolheu Inês de Castro?
Inês de Castro é uma daquelas personagens que está presente e viva no imaginário de todos os portugueses. Quando estou a estudar para uma rainha há sempre personagens e histórias que ponho de lado a pensar: tenho que voltar aqui.

Uma lista de figuras promissoras?
Exatamente.

Não parece haver muita informação histórica sobre Inês de Castro...
Há muito pouca. O retrato mais fidedigno que temos são os túmulos de Alcobaça. Fui lá várias vezes, passei horas a olhar para o túmulo de D.Pedro e para as imagens. É o contexto político que nos permite perceber porque é que Inês é importante e porque é que lhe chamamos assumidamente espia. Era banal na época que damas bonitas fossem colocadas pela família no caminho de pessoas influentes. As princesas são sempre peças num tabuleiro de interesses diplomáticos. É uma plausibilidade muito forte que a colocação de Inês também tenha servido os interesses de duas famílias: a dos Castros e dos Albuquerques.

Que certezas temos sobre a história de Inês?
Temos algumas. Temos a certeza que era Castro e que pertencia quase que a uma dinastia da Galiza. Também sabemos que foi educada e criada pelo inimigo, o meio-irmão do rei Afonso IV. E depois temos muita informação sobre o contexto histórico-político da época. Da peste, de tudo o que existe nessa altura…

Imagino que pelo meio encontre muitos mitos...
Imensos mitos. Quanto menos informação há, maior é a possibilidade da fantasia.

Alguns dos seus livros são quase uma biografia, mas nunca os assumiu assim. Porquê um romance histórico e não uma biografia?
Em muitas ocasiões, como acontece [no livro] D. Maria I, por exemplo, limito-me a pegar numa carta e a transformá-la num diálogo. Ou seja, estou muito segura que aquela troca de informação existiu mas, a partir do momento em que há diálogos, em que há descrições de coisas que não presenciámos, entramos no reino da ficção. É por isso que, em todos os meus livros, há um dramatis personae, que no caso da Inês é especialmente longo - é o momento em que digo ao leitor: "Atenção, eu sei que estas duas pessoas se corresponderam, mas que existiu uma paixão entre elas é por minha conta."

Trabalha sempre com um historiador para os seus livros?
Em cada livro tenho tido sempre o apoio de um historiador especialista naquela época. Depois, as técnicas que aplico são muito as do jornalismo. Sobretudo, quero contar uma história e quero contá-la de uma maneira fidedigna, rigorosa mas atraente, que suscite vontade de ler.

Porquê este narrador [Teresa Sanches, mãe adotiva de Inês]?
Teresa é a pessoa com mais fiabilidade que terá seguido o percurso de Inês. Além disso, é uma mãe adotiva e isso fascina-me. Permite-me, por outro lado, ter uma visão crítica em relação ao comportamento da Inês. Para uma mãe que criou uma filha, o desejo não é de certeza que ela seja amante de um homem e viva isolada. Isto é a minha perspectiva: esta história, objectivamente, é a história de um homem que não consegue proteger uma mulher.

Por isso é que D. Pedro aparece um bocadinho como cobarde?
O Fernão Lopes fala de D.Pedro como sendo um homem de impulsos, muito gago. Era o único filho (todos os irmãos rapazes morrem), e por isso era nele que estavam depositadas as esperanças de Afonso IV. E Afonso IV é um homem que não se põe em dúvida, com uma tolerância zero à frustração e que, ainda para mais, herdou um verdadeiro trauma em relação ao adultério. É ele que institui as pragmáticas contra o adultério, leis rigorosíssimas. Estamos num tempo em que a escrita é um detalhe, tudo depende da fluência e da capacidade de manipular através da fala. É preciso imaginar D. Pedro, gago, neste contexto.

É por isso que ele não assume o romance com Inês?
O conde de Barcelos, meio-irmão de Afonso IV, vem dizer-nos que o sobrinho nunca falou do casamento ao pai por terror. Ele, de facto, vive nesta dicotomia. E, das duas uma, ou nós achamos que Inês era uma oportunista e que não se amaram, ou acreditamos que D.Pedro tinha qualquer coisa de muito bom que ela conseguiu ver nele e amá-lo por isso. Depois temos aqueles túmulos, que são considerados a obra mais bonita da idade média no mundo inteiro. Foi D. Pedro que os criou. Por outro lado, sabemos que ele foi avisado que era preciso esconder Inês, foi pressionado para assumir [o romance entre os dois] e não o fez. Só é capaz de assumir este amor quando o pai morre.

A escrita de livros históricos é muito minuciosa. Uma vez contou a história de um leitor que lhe escreveu a dizer que no tempo de D. Teresa não havia broa de milho. Já lhe aconteceu mais vezes?
Por acaso foi muito engraçado porque há pouco tempo estive com um historiador da Idade Média e, quando lhe contei essa história, ele disse-me: "Mas existia milho maís…" Ou seja, às vezes dou a mão à palmatória muito rapidamente [risos]. Mas, por exemplo, o livro da Catarina de Bragança passou todos os revisores e no texto há um 31 de novembro… [risos] Passaram-se anos até que um leitor reparou. Como felizmente os livros têm feito muitas edições, podemos corrigir.

Ainda recebe muitas críticas de historiadores?
Já mudou muito. Tenho tido o prazer de ter historiadores que admiro a elogiarem os livros e a dizer que gostaram muito de ler. A nível de professores de história dizem que tem sido uma ajuda fantástica para eles. Às vezes há pessoas que acham que o tom é muito informal. E a minha perspetiva é: se queremos que o leitor do século XXI entenda e as personagens se tornem a três dimensões, não podemos falar de emoções e de sentimentos como se falava na época, porque isso é criar um distanciamento imediato entre o leitor e o tempo.

Acompanha as traduções e adaptações que são feitas dos seus livros?
Acompanho. Mesmo para a tradução, também há muita coisa que tem de ser repensada. Para mim, a tradução da Filipa de Lencastre para inglês era fundamental em termos emocionais. Os meus pais são ingleses, ambos. Filipa de Lencastre é a única princesa inglesa que foi rainha de Portugal e grande parte dos meus tios e dos meus primos são ingleses e continuam a viver em Inglaterra. Então, para mim, traduzir era muito importante. Dediquei o livro à minha mãe mas ela já não o leu… O meu irmão ainda lhe leu umas partes, ela já estava muito doente mas comovi-me muito porque a minha mãe, no hospital, dizia assim: "Alguém me pode ler outra vez a dedicatória?"

Sobre aquela parte em que a sua mãe diz ao seu irmão, com um certo cepticismo: "Ah, a sua irmã acha que vai escrever um romance histórico"?
Sim, muito ceticismo. A minha mãe achava que [em 2007] com três filhos e um trabalho a tempo inteiro num jornal eu não ia fazer mais nada. Mas ela também foi sempre assim, muito exigente. Preferia duvidar antes de acreditar.

De certa forma, foi isso que a fez escrever Filipa de Lencastre…
Sim, sim. Eu tinha uma coisa muito estranha com a minha mãe que durou até ela morrer. Transformava-me em adolescente ao pé dela. Estava sempre a dizer que não ia embirrar e acabávamos nos mesmos diálogos: "não penteou o cabelo atrás"; "eu não vejo o cabelo atrás" [risos]. Mas o que aconteceu com a Filipa [de Lencastre] foi que eu descobri que havia uma cadeira de português na Universidade de Oxford. O meu pai formou-se lá e tinha muito orgulho nisso e eu disse: vou traduzir o livro e vou a Oxford lançá-lo na data em que ele faria 100 anos. Falei com o professor Phillip Rothwell e ele foi impecavél, disse logo para eu ir e sugeriu darmos o prémio Filipa de Lencastre e o meu livro ao melhor aluno de português em Oxford. E lá fui.

Este é o seu décimo livro histórico. Todos, com exceção de D.Manuel, são centrados em mulheres. Porquê?
Gosto de pôr a mim mesma cenouras para me auto-entusiasmar. Depois de oito livros para mulheres, decidi testar um homem. Mas mesmo Dom Manuel é sempre contado pela perspectiva das mulheres.

É verdade que pediu conselhos ao seu marido? Teve alguma dificuldade extra?
Tive até perceber que D.Manuel tem muita sorte, porque há dois cronistas contemporâneos dele (Garcia de Resende e Rui de Pina) que são de uma época em que se detalham emoções. "Ele chorou, ele não gostou…" São muito detalhados e a partir do momento em que percebi que davam voz a D.Manuel senti-me muito mais segura. Mas sim, o meu marido é a cobaia. [risos]

Já vendeu mais de 300 mil exemplares, qual é o segredo para o sucesso?
Quando começo a investigar uma história, estou na mesma posição dos meus leitores. Sabia tanto de Inês de Castro como as outras pessoas e isso faz com que consiga pôr-me ao nível do leitor e consiga perceber o que é que a mim me atraiu, o que é que a mim me fez levar mais longe, o que é que me deu mais adrenalina. Por isso, se calhar tenho uma posição muito próxima dos leitores.

Voltou às mulheres agora. Na lista de personagens futuras quem está?
Não queria deixar as mulheres, há tanto para dizer ainda. Mas o campo está aberto, conquistei essa liberdade. E a aceitação dos leitores. D. Manuel foi um livro com um feedback muito rápido e muito bom, percebi que para o meu leitor não é fundamental ser uma mulher.

Já tem a próxima personagem definida?
Já…

Já mas não pode dizer, é isso?
É isso.