CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DE TECLADO EM PUNHO
Publicado em: 11/04/2024
Como não é exigido que se prove nada em tempo útil, a difamação está ao alcance de qualquer um, alegremente e sem consequências.


Desconfio que mesmo os invejosos e os paranoicos, os amantes de teorias de conspiração e os que se viram destronados do posto, sim, até esses, já estão cansados desta interminável época de caça em que qualquer pessoa empossada em qualquer cargo público, se transforma imediatamente em presa a abater. Apesar do famoso questionário criado por António Costa para peneirar ministros e secretários de Estado, na esperança de desencantar a tempo parentescos e incompatibilidades, ter transitado para os novos titulares, não há qualquer esperança de que chegue para evitar que escape sempre qualquer “escândalo” capaz de alimentar semanas de noticiários.

Sobretudo porque as histórias são muitas vezes disseminadas sem contraditório, especialidade das redes sociais e do seu eficaz sucedâneo os grupos de WhatsApp, em que toda a gente se parece esquecer de uma lição que quem tem irmãos conhece desde criança: quando só uma das partes se pronuncia, a sua versão dos acontecimentos parece sempre absolutamente sem falhas. Foi sempre ele que começou, ele que comeu o chocolate que estava na dispensa, ele que bateu primeiro.

Na vida real, dos adultos do século XXI, qualquer um pode ir de herói a besta num estalar de dedos, ou porque supostamente não pagou um imposto, recebeu uma indemnização que alguém acha indevida, acedeu a uma consulta num tempo demasiado curto, ou pelo contrário demasiado longo, conseguiu a aprovação de um jacuzzi na varanda, ou foi visto a beber um café com um empreiteiro que — não pode ser coincidência — construiu a nova ala do hospital de não sei onde. Nesta caça, não são precisos mais do que indícios, vestígios, um diz-que-disse de uma amante vingativa, de um ex-marido ressabiado, de um funcionário que se considera indevidamente despedido ou de um chefe vingativo. Como não é exigido que se prove nada em tempo útil, a difamação está ao alcance de qualquer um, alegremente e sem consequências.

Aliás, estes novos caçadores, de teclado em punho, começaram já a apontar as suas armas mortíferas em direção a meliantes que ainda não tiveram oportunidade de se corromperem, na ânsia de serem os primeiros a sacar o troféu.

O meu medo é que neste clima, ninguém com dois dedos de testa se queira sujeitar a este suposto “escrutínio democrático”, mas que na realidade faria as delícias de qualquer agente da Pide /DGS. Ou seja, que os mais capazes não estejam para tamanha chatice, sabendo à partida que ninguém vai acreditar que ali estão por genuíno serviço público, e a profecia acabe por se cumprir. O resultado será que só os mais fracos de cabeça, com menos mundo e experiência, e com os bolsos vazios, se disponham a aceitar as dores de cabeça que estes lugares inevitavelmente acarretam.

Porque, convenhamos, só alguém com muita fome e sede pode considerar que um jantar, mesmo no melhor restaurante, ou uma garrafa do mais caro champagne, compensam uma vida de intermináveis reuniões com sindicalistas que não têm a menor intenção de chegar a um acordo, “dialogar” com quem imagina que os cofres do Estado são uma delegação da caixa de multibanco onde os pais lhes iam buscar a semanada, ou partir em périplos de corta-fitas de canis municipais ou de incubadoras unicórnio. A sério, temos de ser mais humildes e menos desconfiados — pela minha parte, agradeço desde já a todos os que queimam as pestanas a velarem o melhor que sabem pela minha vida, enquanto aproveito para ver mais um episódio de uma série, com os pés pousados em cima da mesa.