CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 CONDÓMINOS À SOLTA
Publicado em: 27/03/2024
Toda a gente sabe que estas reuniões são o pináculo da chatice e que quando caímos na ingenuidade de participar ativamente corre-se um risco enorme de perder a paciência e insultar um vizinho, que a partir daí nunca mais nos segura a porta do elevador e não desculpará um centímetro do nosso carro mal estacionado na garagem.


Decididamente que não se pode falar do que não se sabe. Do que não se viveu. Uma reunião de condomínio é uma dessas experiências impossíveis de simular - ou se passou por ela, ou como se diria em castelhano, que ando a aprender, não se faz “ni puta idea”.
Contudo, tendo sobrevivido a uma, as outras são todas iguais, suspeito mesmo que universais. Não é a agenda de trabalho que as uniformiza, nem tão pouco os assuntos em discussão, mas sim os personagens que as frequentam.
Toda a gente sabe que estas reuniões são o pináculo da chatice e que quando caímos na ingenuidade de participar ativamente corre-se um risco enorme de perder a paciência e insultar um vizinho, que a partir daí nunca mais nos segura a porta do elevador e não desculpará um centímetro do nosso carro mal-estacionado na garagem.
A forma que encontrei para me conter foi a de me assumir como investigadora da National Geographic, fazendo um levantamento dos cromos mais habituais nestes convívios. Para que o estudo seja o mais fiável e exaustivo possível, não hesite em confirmar as espécies descritas e a acrescentar as que estão em falta.

O Professor - Geralmente é um engenheiro, de qualquer coisa, tanto faz se civil, químico ou eletrotécnico. Usa o jargão próprio para criticar a estrutura do prédio, os acabamentos, a qualidade dos materiais e por aí adiante. Sabe tudo e critica tudo, usando de um paternalismo arrogante para com os “colegas”. Altamente perigosos porque qualquer simples intervenção para justificar a escolha do modelo do caixote do lixo toma-lhes vinte explicações inúteis sobre a resistência dos materiais.

O Passivo - Quer estar de bem com Deus e com o diabo. Acena quando fala um, parecendo que o vai apoiar, mas depois abana a cabeça com a mesma convicção quando alguém diz o contrário. Sim, é preciso um capacho novo para a entrada, não, não é preciso um capacho novo para a entrada. Por medo de se comprometer e arranjar inimigos, acaba por bloquear todas as decisões.

O Opinioso - Tem opinião sobre tudo. Não é fundamentada em nada, exceto no facto de lhe ter ocorrido naquele momento e estar seguro de que tudo o que lhe passa pela cabeça é material valioso a partilhar com os demais. Quer mudar as cores das paredes da entrada do prédio, porque o da prima ficou muito bem em azul bebé, e por aí adiante.


O Preguiçoso - Não leu os mails, não viu a agenda, não abriu o Excel com o orçamento, e estava seguramente no Tinder quando se explicou o que estava em causa. Ou seja, procura um compacto telenovela, repetido em frases simples e que não custem muito a digerir. Como há sempre vários, que acordam em alturas diferentes, obrigam a interrupções e recuos constantes da agenda.

O Egocêntrico – Só lhe interessa o que lhe toca a ele. A torneira da cozinha tem pouca pressão e o ralo da banheira entope muito, o gato sofre porque não gosta que o vejam na varanda, por isso convinha mandá-la tapar. Espera uma solução imediata, e que a ordem de trabalhos seja revista para que se equacionem os seus dramas em primeiro lugar.

O Paranoico – Está desesperado porque desapareceu o dispensador de gel na entrada, quer limitar o número de passageiros no elevador, garante que a tinta dos patamares tem bolores e fungos, e até vê caruncho no cimento. Por muito que os outros condóminos tenham pena do sofrimento mental que manifesta, não há forma de o resolver, porque tratado um problema, logo surge outro. Habitualmente a coisa acaba mal, quando por unanimidade se decide que não deve parar de tomar os comprimidos.

O Indignado - A veemência com que fala é sempre igual, o assunto é que vai mudando. Tudo é uma injustiça, um atentado, uma provocação. Em lugar de contagiar os outros com a sua causa, aliena-os, e ao fim de meia hora estão todos prontos a atirar fora o menino com a água do banho.

E finalmente:
A Megera – Desculpem, sei que o termo não é bonito e, além disso, fere a igualdade de género, mas é habitualmente uma mulher. Sempre ligada a autoridade – juíza, polícia, advogada, chefe de qualquer coisa —, escuda-se no jargão jurídico. Ameaça denunciar, apresentar queixa, levar a tribunal. Embirra com as criancinhas do vizinho que choram para lá das seis da tarde, abomina os adolescentes do prédio, o casal que faz amor no andar de cima, as dedadas nos vidros da porta da entrada, o elevador sempre preso no 6.º andar, a incompetente da empregada que não lava bem as escadas. Infelizmente não é uma espécie em vias de extinção.