CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 ALEXEI NAVALNY, A FORÇA DO NÚMERO 1
Publicado em: 28/02/2024
O 1 é um dedo apontado à nossa inércia e cobardia. Afinal, se um lúcido Navalny deu a vida por uma causa, numa paixão longa e dolorosa, então eu também podia. E devia.


A morte de Navalny foi um murro no estômago. Senti-me indignada e simultaneamente tão impotente e zangada com a nossa passividade perante os mais flagrantes abusos dos direitos humanos — a minha, a de tantos de nós, a de Portugal e a da Europa.

Senti-me ingénua, estupidamente ingénua. Porque enquanto seguia o esforço de denúncia e oposição que, mesmo numa cela de dois metros por dois, Navalny corajosamente mantinha, ia dizendo a mim mesma que Putin não se atreveria a fazê-lo desaparecer, que os pesos pesados da política mundial e a opinião pública internacional teriam a força necessária a salvá-lo, como há alguns anos aconteceu com Mikhail Khodorkovsky, a quem foi permitido o exílio em Inglaterra. Não dei pelo “pormenor” de que nos faltava Angela Merkel e que nesse tempo pré-guerra da Ucrânia, o presidente russo procurava dar a aparência de um líder democrático, com o desejo de se aproximar do Ocidente, e que agora está em roda livre — afogado no seu narcisismo, inebriado pelos “suicídios” de que ninguém lhe pede contas ou, simplesmente, numa vertigem de “perdido por cem, perdido por mil”.

Mas, apesar do meu pensamento mágico, Navalny morreu, de “causas naturais”, obviamente, as mesmas “causas naturais” que já o tinham tentado matar tantas vezes antes. E enquanto a mãe e a mulher valentemente se batem para não o deixar esquecer, o que li esta semana nas caixas de comentários de jornais e nas redes sociais levou-me a escrever este texto. Dizem, demasiados, que é estapafúrdio o “barulho” em redor da morte de uma única pessoa, por muito válida que fosse, quando milhares de inocentes morrem milhares em Gaza, como se a denúncia de uma coisa, invalidasse o escândalo da outra.
Cheguei ao meu ponto: porque é que Navalny, sozinho, nos move e comove tanto?
Exatamente porque é apenas um. Uma única pessoa, tal como cada um de nós, dispondo de uma única voz. E sendo apenas 1, não nos permite desculpas do género, “Pois, mas sozinho o que é querem que faça?”

O 1 é um dedo apontado à nossa inércia e cobardia. Afinal, se um lúcido Navalny deu a vida por uma causa, numa paixão longa e dolorosa, então eu também podia. E devia. Pelo menos assinar uma petição, contribuir para uma ONG, implicar-me a favor dos outros. Deixar de ser comentador de bancada, no sofá a queixar-me de que os outros são todos uns corruptos, e agir.

A força do 1 não é de hoje, está patente na imagem de Jesus Cristo na cruz, nas vidas de tantos heróis e mártires. É aquilo que explica a demora cruel em devolver o corpo de Navalny à família, o medo de um funeral público, o medo do poder de uma campa, de uma estátua, até de um cravo deixado num passeio.

Mas é, também, porque o número 1 nos provoca o desconforto da culpa que, tantas vezes — e Navalny não será exceção —, procuramos desvalorizar a vítima, imaginando motivos ulteriores para os seus atos, defeitos e crimes escondidos, tudo o que possa reduzir a sua heroicidade, para que não nos sintamos tão pequeninos ao seu lado. Como estamos agora a fazer com um outro número 1, Volodymyr Zelensky.
Porque a alternativa não é minimizar os heróis, diminuindo-os, mas admirá-los e deixar que nos inspirem a tornarmo-nos melhores pessoas. Só assim as honramos, e simultaneamente nos dignificamos a nós mesmos.