CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A ARMADILHA DO TRABALHO REMOTO
Publicado em: 17/01/2024
É verdade que à medida que envelhecemos a nossa massa cinzenta encolhe, torna-se menos plástica, e recebe menos informação dos sentidos — da visão e audição, por exemplo, que também já não vão para novos. O processo é lento e insidioso, mantendo-nos na ilusão de que as artroses não dizem nada do brilho dos nossos neurónios. Se associarmos este processo a um desfasamento do dia-a-dia da “população ativa”, é grande a probabilidade de nos tornarmos egocêntricos e casmurros. Passamos a recorrer sobretudo à nossa base de dados – ou seja, à experiência passada —, sem perceber que está desatualizada, e os erros de juízo são inevitáveis Não estou a inventar e, se não acredita, procure “Uma visita politicamente incorreta ao cérebro humano”, um livro do neurologista e investigador Alexandre Castro Caldas que, além do mais, lhe dará ideias de como evitar estas armadilhas.

Dito isto, às vezes, caímos no extremo oposto, desvalorizando a humanidade que nos une, não só transversalmente à medida do planeta, como através dos séculos e séculos que não são, afinal, mais do que uma gota de água na História. A forma como exprimimos as emoções é, evidentemente, modelada pela cultura em que nos inserimos, mas isso não significa que não sejam essencialmente as mesmas — a dor da perda, o medo da morte, a necessidade de pertença e, claro, os instintos animais mais básicos, de proteção e defesa. E, nesse sentido, o conhecimento da natureza humana pode ajudar-nos a colmatar os efeitos da velhice. Com sorte, transformar-se em sabedoria.

Mas onde é que quero chegar com este relambório todo? À gabarolice, claro! Pelos vistos a minha intuição de que o teletrabalho exclusivo não ia servir nem aos trabalhadores, nem às empresas, não era tão senil quanto parecia. A exigência de grandes empresas, nomeadamente tecnológicas — como a própria Zoom — de obrigar os funcionários a regressar aos escritórios, foi o primeiro sinal, mas os últimos dados da Gallup não deixam dúvidas. A erosão do sentido de missão e de objetivos comuns entre aqueles que estão apenas em teletrabalho caiu a pique desde 2019, e os mais empenhados são aqueles que funcionam numa modalidade híbrida, a uma distância mínima dos que trabalham exclusivamente on-site. Custa apanhar a seca do trânsito e, aparentemente, é uma autêntica perda de tempo, mas, lá está, a ligação física aos outros, a sensação de pertença e o fator surpresa — a troca de olhares, a gargalhada, a cumplicidade até aí insuspeita, as conversas no corredor, o conselho inesperado e até a má-língua —, são um combustível essencial da produtividade e da criatividade.

Os trabalhadores híbridos inquiridos pela Gallup dizem-se mais satisfeitos, e com menos burnout, mas queixam-se de se sentirem menos ligados à cultura da organização, confessam ter mais dificuldade em colaborar e em manter relações de trabalho com os colegas, e sentem escapar-lhes as oportunidades de colaboração com outras equipas da mesma empresa. Quanto aos gestores, reconhecem que este sistema permite contratar “talento”, que de outra forma não aceitaria o emprego, mas lamentam uma baixa na comunicação, na colaboração, na cultura de empresa, na produtividade, registando menos criatividade e inovação.
Pois.
Querem o comentário da velha do Restelo? Ao ler o relatório do princípio ao fim fiquei com a impressão de que as empresas passam por uma crise parecida com a da família: querem fazer das tripas coração para manter a “criança/trabalhador” constantemente feliz, mas o tiro acaba por sair pela culatra.
Ou preferem a conclusão mais racional? O processo é irreversível porque as empresas fazem as contas ao metro quadrado de um escritório e compensa manter os trabalhadores em casa, mesmo que mais sozinhos e, consequentemente, menos produtivos.
Se calhar, como em tudo, a verdade está algures aqui no meio.