CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 O QUE NOS REVELAM OS SONHOS
Publicado em: 19/12/2023
Acredito nas revelações dos sonhos. Naquela ideia de dormir sobre um assunto e acordar com a solução. Acredito mesmo.

Vamos para a cama com uma preocupação a que, por vezes, nem conseguimos dar nome, e quando o carcereiro do nosso inconsciente adormece, abre-se a porta da prisão e saem de lá ideias. Aquelas que a nossa racionalidade classificou como demasiado absurdas para serem consideradas, as que tememos que nos deixem ficar mal, mas que, de vez em quando, são eurekas. Sobre-nos tempo para dormir e, claro, a sabedoria que nos permita encontrar o doutor Freud dentro de nós, disposto a ajudar-nos a dar sentido ao que nos vem à cabeça.

Pronto, isto tudo para dizer que o texto de hoje resulta de uma destas revelações - sonhei-o. E mal abri um olho percebi que talvez pudesse servir os leitores da Máxima.

Foi com esse sentido de missão que agarrei no telemóvel para o passar a escrito, antes que desaparecesse de novo.

Mas, antes de mais nada, têm de gramar o meu sonho.

Simplificando, entrava num grande escritório de advogados com um neto recém-nascido ao colo. Em transe absoluto. Queria devolvê-lo aos pais em Inglaterra e estava de cabeça perdida a imaginar o pânico da minha pobre nora. Tenho ideia de que estava comigo porque eu tinha feito alguma chantagem emocional, do estilo "Sou avó, e não o vou ver crescer", ou coisa assim, mas mal o meu desejo se concretizara, arrependera-me terrivelmente. E só queria corrigir o erro. Simplesmente, para sair do país com ele, precisava de uma declaração, de um documento que não fazia ideia qual era, nem como o obter. Daí a urgência de conselho.

Só que toda a gente continuou impavidamente indiferente, chamando secretárias e seguranças para me explicarem, de forma irrepreensivelmente educada, mas numa versão de autómato, que era preciso marcar consulta, apontando-me obviamente a porta de saída. E, de repente, saiu de um gabinete uma mulher, que pegou no bebé e se sentou com ele ao colo, com a descontração e a emoção que só os iniciados à infância conseguem, e perguntou em que é que me podia ajudar. Entreguei-lhe o caso!

Esperem, sei bem que falta explicar a relevância desta história para quem a lê. Aqui vai: mal acordei percebi que, embora pese o preconceito de situar a história num escritório de advogados, estava perante os contornos de uma "experiência social" aplicável a todos os ambientes profissionais muito competitivos, onde as pessoas estão focadas em cumprir objetivos e cheias de medo de por o pé em ramo verde. Replicá-la, permitiria expô-los a uma situação inesperada, levando-os a perceber que a humanidade pode ser aliada da inteligência, sem perda de produtividade. Que a coragem de ir contracorrente treina-se no dia a dia.

Quando, há muitos anos, na revista Marie Claire, organizei uns "apanhados", com uma atriz que chorava na rua, o que constatei foi que as pessoas olhavam, nitidamente queriam perguntar se podiam ajudar, mas não avançavam até que aparecia um "herói" suficientemente destemido para o fazer — a partir dai, juntavam-se num círculo e ofereciam auxílio. Porque o mais difícil, sempre, é dar o primeiro passo, como no meu sonho fez a advogada que se esteve nas tintas para a opinião dos outros, para as horas faturáveis que estava (teoricamente) a perder, e teve a generosidade de se chegar à frente para salvar um outro ser humano em aflição.

Para sermos um agente do bem, para termos a temeridade de denunciar o mal, é preciso vencermos o receio de errar, de fazer "figura de parvo". É preciso que no lugar onde trabalhamos, se sinta que a compaixão faz parte da "cultura de empresa", e isso cria-se pelos exemplos que vêm de cima, evidentemente, mas também na forma como cada um de nós põe os seus próprios valores à frente do medo (de ser mal interpretado, de ser despromovido ou despedido).

Se quiser aproveitar esta minha revelação onírica para tentar acordar o seu lugar de trabalho, desde já pode contar comigo para fazer o papel de avó angustiada, porque ainda guardo bem presente a memória do desespero louco em que estava. E o bem que me soube encontrar quem me acolhesse. Se calhar, o meu sonho não foi mais do que uma versão moderna do Presépio, em que todas as portas se fecham aqueles pais aflitos, e um bebé nasce numa manjedoura, quem sabe. Seja como for, Feliz Natal.