CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 VAMOS LÁ POR LEGENDAS ÀS NOSSAS EMOÇÕES
Publicado em: 31/10/2023
Parece que está tudo bem, e de repente deixa de estar. O peito aperta, a respiração acelera e uma raiva misturada com angústia toma conta de nós, tão instantânea como se alguém tivesse ligado um interruptor. Pomos a mão no estômago que arde, e sentimos vontade de fugir, de fugir de onde estamos, mas sem saber para onde ir, onde estaremos a salvo desta catadupa de emoções que nos tira o ar. E, às vezes, cresce simultaneamente uma raiva estranha, contra tudo e contra todos, inclusive nós mesmos.

Que raio é isto? De onde veio? Como se sai daqui?

Por esta hora já está alguém a debitar o nome de uma qualquer doença inscrita no DMS, Manual de Diagnóstico das Perturbações Mentais, da American Psychiatric Association que, por curiosidade, descubro que custa 87 euros na Wook, a folhear as páginas que falam de crises de ansiedade e de pânico. Só que agora não me importam os rótulos. Importa-me como chegamos a este ponto, e como podemos prevenir o curso desta história.

Demorei anos e anos a descobrir, e não tenho mais do que teorias. Teorias que, eventualmente, se aplicam apenas a mim, mas que partilho na mesma, não vão, por acaso, servir também a quem tropeçou neste texto.

Descobri que odeio conflitos, e que para os evitar varro demasiadas coisas para debaixo do tapete, na ilusão de que com o passar do tempo algum aspirador intergaláctico as aspire. Mas é mentira.

A situação até pode ficar resolvida por fora, mas por dentro corrói. Voltamos constantemente ao mesmo ponto, recriminando-nos por não termos lutado por aquilo em que acreditamos, precisamos ou queremos.

Descobri que confundo manifestar a minha vontade com agressividade, e agressividade com pecado. Mas é mentira.

É possível sermos firmes e claros nas nossas expetativas, irredutíveis, se necessário for, sem ofender, sem violência. O impulso agressivo é uma coisa boa, uma ferramenta inata que nos permite sobreviver e defender os nossos interesses, mal de nós se dessemos cabo dele. Onde pode estar o problema é na forma como a manifestamos, porque aí sim, é possível, e muito mais produtivo, aprendermos a ser "agressivos com boas maneiras". É uma aprendizagem difícil, que se faz passo a passo, mas que pode evitar aquele nó na garganta, que ainda por cima se desata sempre no momento errado.

Descobri, também, que suporto mal que as pessoas à minha volta não estejam bem — todas em simultâneo, e sempre! Ou seja, fico enervada com coisas tão simples como um filho querer ir a um restaurante de sushi, e outro preferir carne argentina, debatendo-me num esforço estúpido por encontrar uma via que os deixe igualmente satisfeitos. Como se os próprios não tivessem a capacidade de aguentar o embate de serem contrariados.

Descobri que quando faço qualquer coisa contra a minha verdadeira vontade, depressa me vingo. Em mim, a maior parte das vezes, mas também naqueles que me estão mais próximos e que, neste meu delírio, me "obrigaram" a aceitar o seu "programa". Desculpem, sei que parece tudo contraditório, mas isso acontece porque, na realidade, é mesmo — e são esses sentimentos contraditórios que tornam tudo mais complexo. Explico com um exemplo: estamos tão, tão cansadas, depois de uma semana de trabalho intenso, e o nosso namorado/marido/ o que seja, sugere um fim-de-semana no Porto, com os sogros. Como podemos dizer que não, se sabemos que quer muito ir, que os pais dele ficariam tão felizes por nos ver, e que, tantas e tantas vezes, fez o mesmo por nós? Por isso dizemos que sim. E vamos. Mas... subitamente, falta-nos o ar, paralisamos. Estragamos aqueles dias a todos!

De onde veio aquilo? De termos cedido, violentando a nossa exaustão. Da raiva de que ele, que é suposto amar-nos e proteger-nos, não tenha percebido, ou fingido não perceber a nossa exaustão, que não nos podia ter sequer pedido aquele esforço.

Ah, mas eramos livres de dizer que não. Livres? Essa consiste na minha última (auto)revelação.

Descobri que suporto mesmo mal quando é a minha vontade que vence. Sinto-me tão culpada por ser à custa do outro, que entro numa agitação estúpida, como se o tivesse de consolar ou compensar, entregando-lhe, direta ou indiretamente, a taça. Fui daquelas mães que berrava com os filhos quando a uma sexta-feira à noite, acabada de me sentar no sofá, me pediam inesperadamente para os levar a casa de um amigo. Dizia que não, chamava-lhes egoístas... mas depois levava-os.

Pois, por esta altura já me parece que os oitenta e sete euros do tal manual de doenças psiquiátricas seriam bem empregues, mas antes de ir tratar da encomenda, deixo-vos o segredo de um antídoto: pôr as cartas na mesa. Sempre. Quando conseguimos fixar legendas às nossas emoções de forma a que o outro nos entenda, em lugar de presumir que nos deve adivinhar os pensamentos e sentimentos, ficamos todos a ganhar. E depois falta-nos menos o ar.