CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 CONSULTAS AOS MOLHOS
Publicado em: 20/09/2023
Quanto mais a medicina avança, quanto mais se vê obrigada a recorrer a mais e mais tecnologia, quanto menor for o tempo para olharem a pessoa que têm à frente por aquilo que ela é, e não pelo sintoma que traz na manga, maior será o consumo de saúde, que nenhum Orçamento do Estado será capaz de cobrir. Por isso, vamos lá ter a coragem de investir em formas mais criativas de preservar a saúde mental.


O senhor ministro da Saúde foi a semana passada à Assembleia da República debitar o número de serviços que, a cada dia, o SNS prodigaliza: 137 mil consultas médicas, 73 mil de enfermagem, 51 mil consultas hospitalares, três mil e muitas cirurgias, a somar a 17 mil atendimentos nas Urgências. A cada 24 horas, repetiu, provando que 2022 foi um ano recorde de oferta de saúde, e que 2023 ainda promete uma colheita melhor, com mais de 11,6 milhões de consultas realizadas nos cuidados de saúde primários nos primeiros quatro meses do ano.

Enquanto isto, os “privados” orgulham-se, também, de números estratosféricos de intervenções em prol da nossa saúde, multiplicando hospitais em cada esquina, enquanto a oposição, por seu lado, clama por milhares de médicos de família em falta, e brande listas de espera a perder de vista. Ou seja, há muito mais gente que precisa de cuidados e não os recebe.

Ora bem, a matemática não é a minha especialidade, mas chega para fazer uma conta de dividir e concluir que calham muitas consultas, muitas análises e muitos exames a cada português. E que se ainda faltam, seguramente aqueles que não têm recursos para a gincana das marcadas por mote próprio que caraterizam as quem tem seguro de saúde (já são quase 40% dos portugueses), então é porque há uma faixa de gente que não sai dos consultórios. E que ainda está disposta a contribuir do seu bolso, porque o gasto direto das famílias em saúde não para de crescer.

Valha-nos Nossa Senhora da Saúde, o que é que nos deu para este consumo desenfreado? Já sabíamos que de médicos e loucos todos tínhamos um pouco, e o próprio presidente da República Portuguesa confessa-se um hipocondríaco, mas sem desrespeito por quem está realmente doente e precisa e merece os melhores cuidados, fica-se com a impressão de que ir a uma consulta passou a desporto nacional. Ou seja — e isto é para levar a sério! — estamos a tornar as salas de espera no complemento dos centros comerciais (não é por acaso que já se uniram no mesmo espaço), mascarando assim o verdadeiro problema: a solidão e o isolamento, essa sim a doença de que tanta gente sofre realmente.

Decidi fazer de moto próprio uma pequena sondagem por cabeleireiros e disseram-me que muitos das clientes vão sempre arranjar o cabelo e as unhas no dia das consultas, para se apresentarem condignamente no “evento” que as espera. Vestem o melhor vestido, com sapatos a condizer, e ensaiam mentalmente a melhor forma de expor os seus achaques, desejosos de que quem as escute tenha a perspicácia de entender a sua dor subliminar. Infelizmente, o efeito desta terapia encapotada desvanece-se rapidamente, sendo necessário repetir a dose, junto do mesmo clínico ou, se este não revelou empatia, então de um outro, recomendado por uma amiga. Felizmente há os exames, e as análises, e os TACs e as Ressonâncias que vão dando para manter a ligação com aquele lugar onde se encontram cumplicidades, e que, aos poucos, se torna um centro de dia familiar. Todo este processo funciona igualmente como pretexto para ligar a filhos e amigos, procurando disfarçadamente afligi-los com o diagnóstico, conquistando assim a companhia que lhes falta. Mas esta corrida à saúde está longe de ser apanágio dos mais velhos, pela simples razão de que a tristeza e o isolamento não o são de forma alguma.

Quanto mais a medicina avança, quanto mais se vê obrigada a recorrer a mais e mais tecnologia, quanto menor for o tempo para olharem a pessoa que têm à frente por aquilo que ela é, e não pelo sintoma que traz na manga, maior será o consumo de saúde, que nenhum OeE será capaz de cobrir. Por isso vamos lá ter a coragem de investir em formas mais criativas de preservar a saúde mental. E porque, apesar de tudo, ir ao cabeleireiro ou às compras é bem mais saudável do que nos enfiarmos num hospital, porque é que não se inventam seguros de cabeleireiro, de guarda-fatos, de cafés e restaurantes, ou de viagens? Fica a ideia.