CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 D. MANUEL I E A “FUGA DE TALENTOS”
Publicado em: 06/09/2023
Não me consta que D. Manuel I tenha escrito para Bruxelas quando percebeu que estava na iminência de uma “fuga de talentos” sem precedentes, logo ali no momento em que Portugal acabara de descobrir o caminho marítimo para a Índia, e era preciso gente para trabalhar e embarcar.

É verdade que tentou comprar o Papa com um elefante que fazia habilidades e um rinoceronte com uma carapaça de pedras preciosas, mas acabou por recorrer a um método mais eficaz, e que constitui um dos maiores crimes do seu reinado: obrigou os judeus e os mouros a uma conversão forçada, atraindo-os a Lisboa com a promessa de poderem daí embarcar, para depois os enfiar num campo próximo do Rossio, à fome e ao frio, oferecendo-lhes como alternativas a morte ou a pia batismal. Com um sentido prático admirável, dava aos cristãos-novos uma contrapartida: durante vinte e cinco anos ninguém iria bisbilhotar as práticas religiosas que mantinham por detrás da porta, e podiam finalmente ter acesso às carreiras administrativas que até aí estavam reservadas aos católicos. A Inquisição veio depois estragar tudo, incitada pela inveja dos que não gostaram de ver os conversos com mais habilitações treparem pela escada da função pública, ficando-lhes com os lugares, mas no papel o plano era perfeito. E, durante um tempo, funcionou, mas à conta dele cometeu-se uma das mais ignóbeis injustiças, que no século XXI ainda estamos a tentar remediar, a troco de passaportes.

É deste “episódio” extremo que me lembro sempre que oiço o discurso da urgência de impedir a “fuga de talentos”, e que revela a loucura de gastarmos meio século a trabalhar para integrar a União Europeia e conseguir acesso à livre circulação de pessoas, com direito a tratamento igual no mercado de trabalho, para agora nos pormos a choramingar pelos enormes benefícios que essa medida nos trouxe.

Os portugueses fizeram um enorme sacrifício para que os seus filhos estudassem, tirassem um curso superior e adquirissem os talentos que lhes permitem agora encontrar emprego nos países da UE com uma economia mais forte do que a nossa. E não é só um vencimento mais alto aquilo que conseguem, mas, tão ou mais importante, uma carreira na área que os apaixona, multiplicando as suas competências num universo que extravasa fronteiras limitadas — e isso é motivo de celebração.

Mas preferíamos que não partissem. Claro que preferíamos. Mãe de dois emigrantes, preferia, certamente, mas imaginar que é possível resolver o suposto ou imaginário “problema” com regulamentações num mercado aberto é absurdo.

Só as leis do mercado o poderão fazer. Enquanto o foco da nossa economia for o turismo, têxteis e calçado, não estou a ver para onde vamos conseguir atrair os diplomados em engenharia aeroespacial. Mas, felizmente, os horizontes e a ambição dos “jovens talentos” são muito mais amplos e a sua compreensão do mundo mais realista do que a dos nossos governantes.

E, sobretudo, nada mudará enquanto a política for a de perseguir as grandes empresas, fustigando-as com impostos e regulamentações impossíveis, as únicas que podem pagar salários mais altos e ter uma dimensão que atraía os nossos filhos. Nada mudará enquanto as leis e as regras se forem alterando ao sabor da ideologia do momento, assustando e desencorajando o investimento, enquanto a burocracia e a ineficácia dos serviços públicos funcionar como constante travão a todas as iniciativas.

Assim, nem impedimos os nossos talentos de procurar outras paragens, nem somos capazes de reter os que aqui chegam.