CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 NOSSA SENHORA DO Ó E OS FUNDAMENTALISTAS QUE SE OPÕEM AOS MILAGRES DA EPIDURAL
Publicado em: 30/08/2023
Valha-nos Nossa Senhora do Ó contra os fundamentalistas que se opõe aos milagres da anestesia epidural, e que andam por aí a propagar que o parto com dor vale mais do que aquele em que a mulher não precisa de passar por uma agonia para ter o seu filho nos braços.

Cá para mim, baralham tudo. Baralham 1) o incontestável direito a um parto menos medicalizado, em que a grávida é presa a uma cama, sob as luzes inclementes de uma sala assética, rodeada de gente que, se tiver azar, não esconde a vontade de despachar o assunto, sem qualquer respeito pelo ritmo de um nascimento, com 2) um sonho irrealista que pressupõe que se a parturiente tiver a fibra necessária e o mind set adequado tudo se processará "naturalmente", sem sofrimento de maior. Ideia que se baseia na premissa de que se deixarmos o corpo agir em paz, ele tem SEMPRE a sabedoria para dar conta do recado.

Pois, que cada um possa escolher dar à luz conforme entender, parece-me muito bem, e bem-aventurados os que levam a missão a cabo com uma perna às costas, mas o que me mete medo é a reciclagem pós-moderna do "Parirás com dor", maldição que recaiu sobre todas as mulheres a partir do momento em que Eva estendeu a maçã proibida a Adão, levando à expulsão do Paraíso. Também nestas novas teorias, a necessidade de recorrer a uma analgesia é apresentada como resultado de um "pecado" — o pecado de não saberem relaxar, ou respirar, ou de não terem a força mental para sublimar a dor. Basicamente de por um qualquer motivo não estarem à altura deste verdadeiro ritual de passagem, que lhes permitirá intitularem-se mães, com letra grande.

Com outros nomes, essa culpa já era omnipresente em 1989, quando fiz uma reportagem sobre a introdução da epidural nas maternidades públicas em Portugal — as grávidas resistiam à analgesia, não por elas, mas por receio da desaprovação dos maridos, e das mães (certamente, invejosas!). Quando vencidas pelo cansaço aceitavam ajuda, imploravam à anestesista que não revelasse a ninguém este seu momento de fraqueza, mas saíam dali com a sensação de serem mães de segunda.

De não terem estado à altura. Como parece acontecer de novo, quando, por vezes, até são os próprios companheiros — que sabem a teoria toda! — a garantirem-lhes que com mais duas inspirações e um extra de força de vontade, poderiam ter cortado a meta, evitando a anestesia ou, mesmo, uma cesariana. Alguns não conseguem mesmo esconder a desilusão, como se o corpo e as dores fossem deles.

E é precisamente nesses momentos que começo a chamar pela Virgem que desde tempos imemoriais protege as grávidas, uma imagem esculpida na pedra com o ventre proeminente, ou pintada com um sol incandescente na barriga, as minhas favoritas. E peço-lhe que venha explicar a estas mães, a estes casais, que a nostalgia dos tempos que nunca foram é uma armadilha perigosa.

A imagem de Nossa Senhora do Ó era obrigatória no quarto onde a mulher dava à luz, habitualmente numa cadeira de parto, fazendo uso da força da gravidade que a medicina parece ter esquecido. A prova de que a viagem não se previa nem fácil, nem dava garantias de chegar a bom termo, estava no facto de ser aconselhada a fazer um testamento, e de a rodearem de relíquias de santos, amuletos e pedras com poderes especiais. Junto da mãe, ficavam apenas mulheres — parteiras experientes, mas, também, mães e irmãs que esfregavam a zona dos rins com bálsamos de ervas e lhes iam administrando "poções" para as dores. O mais potentes possível, com a desvantagens de que não tinham sido aprovadas pelo Infarmed, nem vinham com bula, variando a qualidade e os efeitos secundários da sabedoria da ervanária ou dos boticários.

À medida que o culto de Nossa Senhora se ia alastrando pela Europa e corria a história de que a Virgem Maria não soltara nem um ai, nem um ui, no momento do parto, as rainhas e as mulheres da nobreza procuravam imitá-la. A grande Isabel, a Católica, ficou famosa por tapar a cara com um pano para que não lhe vissem o rosto contorcido com as dores, e a sua neta, a imperatriz Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e casada com Carlos V, assegurava que preferia morrer a gritar, quando as parteiras a incitavam a exteriorizar o sofrimento. Era cobardia evidenciá-lo.

Mais tarde, começaram a chegar substâncias analgésicas a sério, vindas do Oriente e das Américas e, por exemplo, no século XVI, o rei D. Filipe I de Portugal não só entrou na câmara da rainha Isabel de Valois, como se sentou ao seu lado para lhe dar colherinhas de um destes novos "medicamentos", enviado de França pela sogra, Catarina de Medici. Séculos depois, já em 1853, a rainha Vitória ao ler no jornal que um médico anestesiava parturientes com clorofórmio, mandou-o vir a Londres e insistiu que lhe fizesse o mesmo no momento do nascimento do seu oitavo filho — ficou tão encantada que mandou um frasco do produto mágico à rainha D. Maria II, que morreu de parto num sofrimento tremendo, mas sem nunca o querer usar, numa demonstração do que acreditava ser "coragem".

Quando o trabalho de parto se complicava, como aconteceu com esta rainha, ou arrastava, esgotando a sabedoria das parteiras e, mais tarde, dos médicos especialistas, não havia outra solução senão aguentar e rezar. O nascimento de D. Manuel I foi considerado milagroso porque ao fim de dois dias de dores insuportáveis que em nada resultavam, nasceu sem provocar à mãe uma dor que fosse, no preciso instante em que parava à porta do paço de Alcochete a procissão do Corpo de Deus. A sua primeira mulher, no entanto, não teve a mesma sorte e, como aconteceu a milhares de outras, esvaiu-se em sangue no parto do seu primeiro filho.

Decididamente, saber um bocadinho de História ajuda a resistir a esta propaganda veiculada por influencers e redes sociais, por livros de autoajuda e, até, de alguns cursos de preparação para o parto, e a dar graças por não continuarmos condenados ao parto com dor. Mãe de dois filhos nascidos "naturalmente", e de uma terceira com epidural, garanto-vos que não falo de cor. E, atenção, que ninguém esqueça que um parto traumático deixa marcas muito para além daquele dia...