CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 128.MILAGRE.NET
Publicado em: 09/08/2023
Deu-se, portanto, um milagre, invertendo-se por uns dias a descoberta dos investigadores da universidade de Beihang, na China, que provaram que a raiva é a emoção que se espalha mais rapidamente nas redes sociais, deixando a alegria num distante segundo lugar.


Quantas horas é que o papa Francisco esteve em Portugal? Aparentemente foram 128. Não fiz nenhum estudo científico, mas a minha perceção é de que foram 128 horas em que arrumámos a raiva na gaveta, se calhar pela primeira vez há muito, muito tempo. Os comentários na televisão tornaram-se positivos e otimistas, os jornalistas em reportagens no exterior ficaram contagiados pela alegria, e as redes sociais transformaram-se em prados verdejantes de entusiasmo e paz.

O Bordalo II intimamente deve ter sentido vontade de enrolar o tapete, os detratores dos custos supostamente astronómicos calaram-se, pressentindo que já toda a gente achava o dinheiro bem gasto, e os que martelavam a tecla do estado laico tiveram a inteligência de entender que um milhão e meio de pessoas acampadas no Campo da Graça funcionava, no mínimo, como uma força que não podia ser ignorada.

Deu-se, portanto, um milagre, invertendo-se por uns dias a descoberta dos investigadores da universidade de Beihang, na China, que provaram que a raiva é a emoção que se espalha mais rapidamente nas redes sociais, deixando a alegria num distante segundo lugar.

Mas, por contraste, ficou ainda mais claro o quão zangados andamos nos outros 360 dias, em como o mundo virtual ferve de ódios, a que até os grupos de whatsapp não escapam. Segundo uma sondagem da Gallup à escala planetária, estávamos 18% mais zangados em 2021 do que em 2014, e a suspeita é que o número aumentou muito desde aí. Não é só a temperatura do ar que escala.

Os estudos que põem todas as culpas nas redes sociais multiplicam-se, mas, cá para mim, parece-me um daqueles fenómenos de pescadinha de rabo na boca. Quanto mais isolados e sozinhos nos sentimos, mais a ira e a indignação nos sabem bem e para as expressar puxamos do que temos à mão, ou seja, do telemóvel, encontrando a cada "scroll down" novos rastilhos para justificarem a nossa combustão interior. Porque a verdade é que, num primeiro momento, a raiva e o sentimento de superioridade moral que, tantas vezes, acompanha a indignação, fazem-nos sentir mais vivos, mais enérgicos, mais capazes de ir à luta — quando as pessoas estão enraivecidas subestimam os perigos, ficam mais ousadas e seguras de que vale tudo que para “acertar contas”. A tensão arterial sobe, recebem um shot de adrenalina e noradrenalina e ficam prontas, mais do que isso, desejosas, de passar a vias de facto, confiando que mal imponham as suas razões, se vão sentir mais tranquilas. Ou seja, a raiva justificada pode ser mesmo muito útil e transformadora, mas quando é usada sistematicamente como antidepressivo, a coisa complica-se.

E, de facto, quem desenhou o funcionamento das redes sociais conhece bem os meandros desta emoção e manipula-a para promover o engajamento, premiando as afirmações curtas e necessariamente redutoras, as bocas incisivas, agressivas, pessoais. Ao receber mais gostos e partilhas, quem dedilhou aquela declaração reforça a autoestima, convencendo-se de que não está sozinho na demanda e que há milhares de pessoas que não só subscrevem a sua opinião como estão dispostas a “segui-lo”. Convenhamos que é inebriante.

Só que tem consequências. Quando intuímos que a raiva rende, tendemos a escalar as nossas intervenções, diz William Brady, da universidade de Yale, que analisou 12,7 milhões de tweets de mais de 7 mil utilizadores, para procurar perceber se tornavam o discurso mais contundente com o passar do tempo, concluindo que sim. Ao ponto de afirmar que “Os incentivos das redes sociais estão a mudar o tom da nossa conversa política online”, e nem os moderados escapam a radicalizar-se.

Decididamente, o 128.Milagre.net corre o risco de ser efémero. Pelo sim, pelo não, vou desligar-me por mais uns dias.