CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 NÃO NOS CONSOLEM
Publicado em: 30/05/2023
Aquele que chora a morte de alguém muito querido, não chora por quem partiu, mas por si próprio.


Não digam que já se estava à espera. Não lembrem que o próprio sabia o que estava para acontecer. Não percam tempo a dizer-nos o que já sabemos, que foi o melhor para quem morreu, porque está finalmente em paz, depois de um sofrimento suportado de forma heróica e que teve a generosidade de partilhar, concedendo-nos a graça de nos deixar sentir que ajudávamos a tornar mais suportável o calvário que lhe foi imposto.

Porque aquele que chora a morte de alguém muito querido não chora por quem partiu, mas por si próprio.
É por si mesmo que se lamenta.
É de si que tem pena.
O que o sufoca é o vazio deixado por quem possuía uma alegria cristalina e, até ao último suspiro, encontrou sempre espaço para todos no seu coração, é a saudade antecipadas dos desabafos à volta da mesa da cozinha, da escuta atenta, de quem acolhia e sabia consolar, da companhia, do sentido que lhe dava à vida.

O que o deixa sem ar é a impossibilidade de imaginar o dia-a-dia para lá daquele instante, não saber como sobreviver sem o pó de fada com que aquela pessoa polvilhava as suas asas murchas. É a raiva de não ter ido primeiro, poupando-se a isto.

Quem chora à vossa frente não procura consolo.
O que quer de si é que aceite que está inconsolável, que lhe reconheça o direito ao desgosto e ao luto, dure o luto o tempo que durar, assuma a forma que assumir. Não se apresse a estender-lhe um lenço quando o vir limpar as lágrimas desajeitadamente com as costas das mãos, deixe-o chorar. Os lenços, mesmo os de papel, sabem sempre a ânsia de um ponto final.

E não se calem. Falem de quem morreu, lembrem, sem escrúpulos, tudo o que perdeu. Porque perdeu.
Recordem os verões que passavam juntos, aqueles dias em que vos fez rir até vos doer a barriga com as suas encenações, repitam os episódios que já todos conhecem de cor, abram os álbuns e ensopem sem vergonha as páginas em que estão os seus retratos, encham as jarras com as suas flores favoritas, revisitem cartas e mensagens, emoldurem os desenhos, vistam os vestidos que criou, durmam sobre as almofadas que guardam o seu cheiro, honrem o que vos ensinou. Admirem-lhe a coragem, façam troça dos seus defeitos e imperfeições.

Não calem o seu nome, temendo perturbar quem sofre, acordando a dor que imaginam adormecida — não esqueceram, nem se “distraíram”, temem antes pesar-vos, pressentindo como vos atrapalham as suas constantes recordações, como ficam sem saber o que lhes dizer. Mas ninguém sabe melhor do que eles que não há outro remédio senão usar desajeitadamente as palavras que temos, porque ainda não se inventaram as certas.
Não consolem, permaneçam.