CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A ARMADILHA DOS RÓTULOS
Publicado em: 26/04/2023
Temos um impulso irresistível de fixar rótulos nas pessoas. E elas de nos colarem, logo na testa, se possível, um post-it com os epítetos que supostamente nos definem.

O que é muito irritante e faz mal a tudo, mas resulta provavelmente do desejo de imaginarmos que controlamos o mundo à nossa volta, mapeando-o de forma a dar-nos a ilusão de que é previsível. Conforta-nos a certeza de que podemos contar com A ou com B, porque os definimos como fiáveis, e sossega-nos já ter tirado as medidas a C e a D, de forma a mantermo-nos bem longe dos seus tentáculos. De certa forma, fazemos o mesmo connosco próprios, sentindo-nos mais seguros por nos acharmos boas ou más pessoas, usando a "timidez", a "extroversão", a "beleza", ou o que seja, como bengalas.

Com tudo isto esquecemo-nos de como os rótulos nos limitam e se transformam facilmente num colete de forças, que nos impede de sermos mais como realmente somos, tornando complicado abandonar a carapaça velha, que já não nos serve, trocando-a por uma mais à nossa medida. Pudera: muitas vezes começaram a colar-nos aquela definição logo à nascença. É verdade, etiquetamos os bebés de "bonzinho", porque dorme um par de horas seguidas, de "rezingão", porque tem dificuldade em sossegar, de "mimado", porque "só quer colo" e, demasiadas vezes, acabamos por perpetuar a profecia.

Depois vem a escola que, com uma verdadeira supercola, nos arruma consoante uma paleta de cores, que vão desde o verde para o excelente, o mais bem-comportado, até ao vermelho, do rebelde, do mau aluno, condicionando de tal forma a sua imagem que, está provado, raras vezes na mesma escola se consegue migrar de um grupo para o outro.

O pior é que o rótulo não fica só por fora. É assimilado e assumido — se gostam de mim porque sou a menina bem-comportada, a boazinha, então, se deixar de o ser, vou cair do pedestal, perdendo o amor e a admiração daqueles que são tão importantes para mim; se não for o palhaço da aula, provocando as gargalhadas dos outros, o que é que me sobra?

Insidiosamente vamos forjando a nossa identidade com base no olhar dos outros, da forma como nos retratam, procurando corresponder às expetativas.

Se me orgulho de ser uma pessoa "amável e conciliadora", como é que reivindico um aumento de ordenado, embora sinta que o mereço?

Se sou aquela pessoa "que se dá bem com toda a gente", onde vou buscar a força para confrontar alguém, arriscando a que me venham dizer aquela frase mortal do "Nem pareces a mesma!"

Se passam a vida a dizer-me que a minha coragem é admirável, como é que me dou o direito de não ter força e energia para todas as batalhas? O que pensarão de mim — o que pensarei de mim! —, se não abraçar mais uma causa?

Se sou a pessoa muito atenta aos outros, aquela que dizem que nunca se queixa quando inesperadamente aparecem mais dez pessoas para jantar, por muitas horas que tenha de passar na cozinha para lhes dar de comer; se sou a mãe que nunca perde a paciência com os filhos, como é que me atrevo a cruzar os braços e a dizer chega?

Como é que um humorista se dá ao luxo de não ter graça, o empregado do ano de reduzir a produtividade, e gozar a licença de parentalidade; o perfecionista, de mandar tudo às urtigas?

O mais extraordinário é que até os rótulos negativos funcionam como um faca de dois gumes.

Se uma mulher é constantemente definida como "implacável" e lhe dizem, num misto de crítica e admiração, que ninguém a bate nos negócios, que é um falcão que não deixa escapar nada nem ninguém, que remédio terá senão continuar a sobrevoar os céus, pronta a cair sobre a próxima presa, embora ser vista como predadora lhe cause, simultaneamente, um enorme desconforto?

Se desde a escola a etiquetam de "preguiçosa" — como se gostasse de ter más notas, podendo ter boas! —, se todos os seus esforços para mudar a imagem, falharam, é bem provável que tenha transformado a suposta preguiça num escudo de defesa, não se atrevendo a deixá-lo cair sob risco de ficar vulnerável de novo. E a lista poderia continuar, infinita.

Mas então como é que nos livramos deles, dos rótulos, sem nos perdermos com eles? Tomando consciência de que se mantêm colados porque acreditamos neles. Ou seja, temos de ser os primeiros a deixá-los cair.

Segundo, tomando consciência de que condicionam a nossa liberdade, e que a felicidade e o equilíbrio não resultam de uma suposta coerência externa — aquilo que os outros pensam de nós —, mas de podermos escolher livremente em cada situação, como queremos agir. E conforme o interlocutor que temos pela frente. Por outras palavras, podemos dizer "Sim" a uns, e "Não" a outros, podemos ser afáveis e simpáticos com quem merece essa afabilidade e simpatia, mas reagir de outra forma perante quem nos maltrata ou desagrada, sem deixarmos de ser boas pessoas, podemos continuar a ser líderes assertivos e firmes, mas deixando cair o nosso lado mais autoritário e prepotente, podemos exigir um aumento de salário, sem nos considerarmos menos femininas por isso. Está decidido, vamos despachar uma mão cheia de rótulos, ou não estivéssemos em abril.