CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DEIXEM OS VOSSOS FILHOS EM PAZ
Publicado em: 21/04/2023
Temos mesmo de moderar a nossa ansiedade com as notas, lembrando-nos que educar é muito mais do que pôr o nome do nosso filho a brilhar num quadro de honra.


“Deixem os vossos filhos em paz” — a frase surgiu-me em sonhos e pareceu-me tão lúcida, que me obriguei a despertar para a dedilhar no telemóvel. Tratou-se, portanto, de uma revelação do além, e deve ser entendida como tal, palavra de escuteiro.

No meu sonho era perfeitamente claro que se destinava aos pais que chagam os filhos com as notas, que infernizam a sua própria vida, e a deles, com exigências académicas estapafúrdias, martirizados pela certeza catastrofista
de que se os seus descendentes não estiverem na liga dos excelentes, não entram na universidade, depois não arranjam emprego e acabam, claro, debaixo da ponte.

Aos pais que lhes roubam a infância, insistindo em transformar o jardim-de-infância numa escola onde a brincadeira é trocada por fichas, porque imaginam que brincar não serve para nada, atolando os tempos livres com TPC´s e ameaças de que “Assim não vais a lado nenhum!”, numa escalada que se agrava a cada ano de escolaridade. E está, muitas vezes, contaminada de narcisismo, de desejo que cheguem a metas que nos escaparam.

Mas tal como todos os avisos divinos, também este vinha acompanhado do anúncio de um castigo para aqueles que não acatem a instrução celestial: caso não as deixem sossegadas, as vossas crias vão acabar a escrever mails como os do Dr. Hugo Mendes. A apresentar-se em comissões parlamentares como a arrogância do Dr. Nuno Pedro ou do Dr. Galamba, destratando os outros, com um sarcasmo que imaginam prova da sua superioridade intelectual. Ou, talvez, como clones da presidente da Comissão Técnica Independente que nos veio convidar a colocar um aviãozinho no lugar onde desejamos que fique o novo aeroporto de Lisboa, que já vai em Leiria.

Esta premonição terrível tirou-me completamente o sono. Ainda procurei voltar a fechar os olhos, mas só via encarregados de educação, de rosto enfurecido, a abanarem testes marcados a 60 por cento como se fossem multas da Autoridade Tributária, desembolsando poupanças ou recorrendo aos avós para pagar explicações infinitas para os quais os filhos se arrastam, zangados e revoltados, depois de terem dado respostas tortas que incendiaram ainda mais o ambiente. Um pesadelo, portanto.

Falando muito a sério, temos mesmo de moderar a nossa ansiedade com as notas, lembrando-nos que educar é muito mais do que por o nome do nosso filho a brilhar num quadro de honra. Numa sondagem a adolescentes sobre o que mais os desesperava nos pais, a grande maioria respondeu que era o facto de lhes perguntarem a nota do teste, antes sequer de os cumprimentarem, como se não contassem lá grande coisa para lá dos números. Por outro lado, o inquérito à ocupação do tempo, levado a cabo pelo INE, revelou que os filhos gastam escassos minutos por dia a ajudar em casa porque… os pais preferem que estejam a estudar (julgam eles).

Claramente o meu sonho não era um incitamento a que os poupássemos à obrigação de serem alunos diligentes (para seu próprio benefício, e não nosso), a partilharem tarefas domésticas, o cuidado com os irmãos, a participarem nas conversas dos adultos, a praticarem desporto, a fazerem voluntariado, a estarem com os amigos, a irem a museus e ao cinema. Nem tão pouco um manifesto contra as avaliações ou os exames, mas apenas um apelo a que deixemos a escola fazer a sua parte, enquanto fazemos a nossa: mostrar-lhes que há vida para lá dela.