CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A TERAPIA DA ENXADA
Publicado em: 23/03/2023
Odeio jardinar com luvas — gosto de sentir a terra a escorrer-me entre os dedos e de me abstrair completamente de pensar no futuro, ou seja, do estado em que vão ficar as minhas unhas. Sinto-me no céu quando o sol me bate nas costas, este sol suave de primavera, enquanto arranco ervas daninhas e tento pôr em ordem o universo paralelo que é um jardim. É como se uma clareira se abrisse no meio das minhas preocupações e angústias e, por momentos, sou capaz de esquecer a infindável lista de coisas importantes que me faltam fazer, dando a mim própria a oportunidade de pensar só nas lavandas e alecrins que estão à minha frente. A leveza que, aos poucos, sinto dentro de mim, deixa-me perceber como andava sobrecarregada de pensamentos intrusivos, de dúvidas existenciais, de tanto lixo tóxico que sub-repticiamente se vai infiltrando nas nossas cabeças sem darmos por isso. Na verdade, só quando desaparece é que percebemos o quanto pesava.

À medida que corto ramos e folhas moribundas, e vejo a planta tornar-se mais verde, revelando os botões prontos a despontar, imagino que também ela está aliviada por ter deixado para trás partes de si que não lhe acrescentavam nada. Sorrio, sozinha.

Mudo uma azália de sítio, onde está apanha demasiado calor, e fico mesmo feliz por ver que a buganvília pegou e começa a trepar pela parede que escolhi para ela, neste meu saber que se recusa a ser mais do que empírico, porque não o quero profissionalizar. Prefiro mil vezes seguir o instinto e a observação, aceitando sem dramas a forte possibilidade de errar — também há "cadáveres" no meu jardim e, pela impaciência com que, por exemplo, desembaraço as raízes de uma planta para a transplantar, tomo consciência de que não tenho vocação para dentista.

Levanto agora os olhos para a glicínia e constato que em breve estará em flor e, quando assim for, vai mudar em absoluto o alpendre que se encarrega de cobrir, resgatando-o à tristeza do inverno, iluminando-o e enchendo-o do seu perfume. Por enquanto recordo a beleza, mas não a sinto, como se me limitasse a observar uma fotografia a que falta necessariamente o movimento, as vozes e os risos. Suponho que é um pouco como se hibernasse com ela.

Num surto de energia, atiro-me à hera que trepa pelos troncos das árvores, abafando-as. É tão fácil um jardineiro principiante deslumbrar-se com as plantas que crescem depressa e cobrem, sem grande esforço, áreas inteiras. Ao início admiramos-lhe a força e a resiliência, a capacidade de operarem milagres, mas rapidamente entendemos que é à custa de todas as outras à sua volta. A sua ambição não conhece limites, mas só damos por isso quando é tarde demais e travá-las acaba por ser uma tarefa que consome um tempo infinito que poderia ter sido poupado se tivéssemos agido com menos deslumbramento.

Por cima de mim, entre a terra e o céu, está uma corda da roupa onde pousam andorinhas que não se calam, como se estivessem numa esplanada a coscuvilhar sobre a vida da vizinha do 4º esquerdo. O tom das suas vozes torna-se subitamente zangado, e suspeito que as julguei mal, porque falam seguramente das guerras de que fugiram, na esperança de reencontrar a paz do Alentejo. Já pensei em tirar dali a corda, porque fica feia, mas se o fizer deixam de conversar tão perto de mim e perco este espetáculo de asas que se abrem e fecham como se fossem mãos a gesticular para reforçar aquilo que têm para contar.

Volto a atenção para esta espécie de malmequeres, de que não sei o nome, mas também não me importa, que têm o condão mágico de se fecharem em copas quando a intensidade da luz baixa, preparando-se para uma noite descansada. Ao seu lado, existem outras que se entregam ao movimento oposto, deixando cair as pétalas para que os insetos noturnos as visitem — preferem certamente a luz da lua ao brilho incandescente do sol.

Depois dá-me a preguiça e deito-me de costas, protegendo os olhos com as mãos — o meu filho diz-me que os velhinhos, como eu, precisam de uma maior exposição à luz, à conta da vitamina D mas, também, para acertarem o relógio biológico e sentirem menos dificuldade em adormecer. Quando ele tinha 14 anos, e eu apenas 37, sentou-se numa cadeira de baloiço a observar-me e confessou que lhe era doloroso ver os pais envelhecer. É único na sua sinceridade e generosidade. E diverte-me obedecer-lhe.

Lembra-me muito o avô que tinha o seu nome. Foi o meu pai que me ensinou os nomes das flores e das árvores, me contou que conversam entre elas, e algumas são boas e outras espias da rainha má, foi o meu pai que me ensinou a transformar uma papoila numa bailarina, e a usar o suco das folhas para curar feridas. Já cá não está, mas tenho a certezinha absoluta de que agora ensina os querubins que passeiam com ele nos jardins do paraíso, tão fascinados pelas suas histórias, quanto eu.

Nota: Há um truque para salvar as unhas: arranhá-las num sabonete antes de sair para o jardim.