CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 REFORMARMO-NOS DAS COISAS QUE NOS CHATEIAM
Publicado em: 25/01/2023
Em lugar de passar por deprimido porque não lhe apetece sair à noite, ir a jantares do escritório ou a casamentos, anuncie com o melhor dos sorrisos que se reformou dessas atividades. Soa logo melhor.


Tiro o chapéu àqueles que conseguem colocar por palavras o que sinto, deslindar os pensamentos que se digladiam sem nexo dentro da minha cabeça, oferecendo-me um discurso coerente de mão beijada. Foi o que senti ao ler um texto da School of Life, criada pelo filósofo Alain de Botton, desta vez sobre a estupidez de não usarmos a palavra “reforma” para, com muito glamour, pormos um ponto final nas coisas que nos chateiam.

Começando pelo princípio: a palavra, explica, “tem, só por si, um efeito mágico sobre os nossos interlocutores, transformando numa coisa desejável o que noutras condições seria tomado como fraqueza ou preguiça”. Como se estivéssemos a falar do paraíso com espreguiçadeiras e caipirinhas na praia, qual cartaz de publicidade a PPR ou de férias isentas de impostos num reino vizinho.

E dá um exemplo: se alguém no topo da carreira anunciar que foi capaz de antecipar a reforma, toda a gente lhe dá pancadinhas nas costas. Ficamos a admirá-lo. Afinal, conseguiu o que a malta anda na rua a gritar para obter. Mas já se comunicar que desistiu de trabalhar porque não suporta os horários, não está para aturar o chefe, nem lhe interessam promoções e prémios, torcemos o nariz, desconfiamos, pomos-lhe um rótulo de fraquinho, falhado, ou por aí.

Então, se é assim, vamos usar esta “password” para deixarmos de praticar uma miríade de atividades classificadas como vitais, sem perder a nossa imagem de pessoas inteligentes, honradas e dignas. Para sermos aquilo que seríamos se não estivéssemos tão dependentes do que os outros pensam de nós. Botton garante que, além do mais, só estamos a facilitar a vida a quem nos rodeia, porque ninguém fica a sentir que nos tem de consolar. Pelo contrário, fazem-se festas.

A lista é individual, obviamente, e o trabalho até pode não ser a prioridade. Podemos preferir uma “reforma antecipada”, por exemplo, da nossa vida social. Isso mesmo. Em lugar de passar por deprimido porque não lhe apetece sair à noite, ir a jantares do escritório ou a casamentos, anuncie com o melhor dos sorrisos que se reformou dessas atividades. Soa logo melhor. Assim deixamos de ser vistos “como pessoas que não gostam de pessoas, ou que não têm talento para socializar, mas como alguém que já deu para esse peditório e agora quer concentrar-se a aprofundar amizades, convivendo apenas com duas ou três pessoas de cada vez, ou a aprender uma nova língua, num curso tirado a partir da cama.”

Pode também reformar-se mais cedo da “sociedade de consumo”, sobretudo quando quiser justificar porque desistiu de um Tesla, com a certeza de que passará a ideia de que optou por uma vida mais espiritual, ou que se reformou de Don Juan, porque já não tem idade para aprender a usar o Tinder. Particularmente atraente é declarar que se reformou da parentalidade, conseguindo assim deixar de se preocupar com as estroinices dos filhos, cessando as suas funções de banqueiro, motorista, estalajadeiro e “coach” da descendência, exigindo que celebrem consigo essa vitória. Boa sorte.

Até na política esta abordagem pode ser usada. Aliás alguns mais iluminados já a praticam com reconhecido êxito. O Dr. Nuno Pedro, por exemplo, ao perceber a barracada em que nos tinha enfiado com a nacionalização da TAP e broncas daí decorrentes, anunciou a sua reforma de ministro, auferindo respeito generalizado, deixando a outros a ingrata tarefa de resolver as asneiras, despindo a camisa de onze varas em que nos meteu a todos. Decididamente, quem sabe, sabe.