CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DIA 104: A DIFÍCIL ARTE DE GERIR AS AMIGAS NA ESCOLA
Publicado em: 24/09/2020
Assistir como mãe às relações dos nossos filhos às vezes parece tão, se não mais, difícil do que estar lá. Temos de aceitar que podem ser os nossos filhos a ficar de fora. Ou que sejam os que estão a pôr outros de lado. Depois temos de aceitar uma verdade ainda pior: somos impotentes perante tudo aquilo e qualquer brilhante ideia que implique interferir no assunto vai dar péssimo resultado.

Ana,

Sabes aquelas flores cor-de-rosa que, por esta altura, apareciam nos campos próximos de nossa casa, quando eras pequena? Eu conhecia o nome oficial, são beladonas, mas um dos nossos vizinhos disse-me que se chamavam “Meninas vamos para a escola”. E, de facto, saem da terra neste tempo de regresso às aulas.

Voltei a vê-las hoje, em pequenos molhos no meio de um campo verde, já com uma luz outonal. E, não sei porquê, lembrei-me que a parte melhor de voltar à escola era estar de novo com as minhas amigas. Mas que, paradoxalmente, a pior parte também era essa, porque os grupinhos de raparigas tendem muito a assemelhar-se a células terroristas: há sempre alguma a ser eliminada. Esses volte-faces quase diários fazem que nalguns dias o recreio seja um paraíso e, noutros, um verdadeiro inferno.

Excepto para a “chefe da banda”, porque há sempre uma líder, que consegue simultaneamente suscitar admiração e terror — todas querem ser amigas dela, fazem tudo para lhe agradar mas, simultaneamente, percebem que é má como as cobras, e que se fossem mais seguras de si teriam a coragem de a mandar dar uma curva. Mas não mandam.

Lembras-te da tua amiga S., de como querias ser como ela, e simultaneamente a odiavas (e eu contigo), por ser tão venenosa e trocista? Pensando bem, quando crescem não ficam muito melhores. Lembras-te como te rias quando eu dizia que, no jornal, também tinha a “minha S.”, que não sei como, nem porquê, fazia de mim gato, sapato, apesar de ser eu a “chefe”?

Não me parece que sejam pessoas felizes, mas a verdade é que nos metem medo, porque será? Talvez tenhamos a intuição de que lá dentro estão cheias de raiva e de inveja, e que a qualquer minuto se podem virar contra nós, e por isso inteligentemente optamos por não as provocar. Mas se as vemos pelo que são, porque é que há uma parte de nós que inveja aquela força, aquela aparente estar-se nas tintas para a opinião (e os sentimentos) dos outros, aquela segurança que não temos?

Mistérios que talvez tu saibas esclarecer. Só mais uma nota: se houver alguma S., na vida das minhas queridas netas, por favor não me contes. Se forem elas a S. de alguém, também não.

***

Mãe,

Sabe que beladona era usada como veneno não sabe?? Hahaha, se calhar é por isso que florescem na altura do regresso às aulas e são uma metáfora para a gestão da vida social das raparigas “Bonitas, queridas, mas potencialmente venenosas!”.

Estou a chegar à conclusão de que assistir como mãe às relações dos nossos filhos às vezes parece tão, se não mais, difícil do que estar lá (mas provavelmente é só porque já lá não estou!).

É que, repare, primeiro temos de aceitar que podem ser os nossos filhos a ficar de fora. Ou que sejam, uma ou outra vez, os que estão a pôr outros de lado. Isso é horrivelmente doloroso. Depois temos de aceitar uma verdade ainda pior: somos impotentes perante tudo aquilo e qualquer brilhante ideia que implique interferir no assunto vai dar péssimo resultado. E, pelo caminho, temos de lembrar-nos de que tudo aquilo que nos parece agora “um disparate, um exagero”, já foi para nós também “a coisa mais importante do mundo”. E que, inversamente, aos olhos dos nossos filhos, pagar a conta da luz ou entregar o relatório a tempo parecem prioridades bem mais fúteis do que voltar a ser amiga da X ou garantir que o X e o Z voltem a ser namorados.

Pode ajudar fazer aquilo que a mãe referiu! Repararmos como temos a ilusão de ter saído do recreio, mas que no nosso trabalho e até nas nossas famílias as dinâmicas das nossas relações não são assim tão diferentes, tirando que sabemos ficar calados mais vezes e/ou substituímos o insulto básico pela ironia. Mas se pensarmos bem, não deixou de ser difícil gerir as nossas amizades/relações sociais. Não deixou de ser emocionante conhecer pessoas novas, de nos relacionarmos mais profundamente com uma ou outra amiga, de ser um equilíbrio gerir os ciúmes entre uns e outros. Mas que também não deixamos de nos sentir absolutamente perdidas e sozinhas quando nos humilham ou magoam, ou quando sentimos o peso da comparação ou da rejeição. Que esse insight nos ajude a fazer a única coisa que podemos realmente fazer quando um filho chega da escola magoado por um conflito, ou simplesmente exausto de toda esta gestão, quando é um bocadinho mais bruto connosco porque disfarçou na escola e descarrega para cima de nós.... ou seja, dar-lhe um abraço e fazer crepes. Funciona para eles e, sinceramente, funciona para nós!

Beijinhos

P.S.: Para que fique claro: embora seja apologista de que há uma altura em que temos de observar, mas não devemos intervir, é claro que em casos graves, ou que estejam a ser difíceis de gerir pelos nossos filhos, acho que os adultos têm mesmo de intervir. Não numa perspetiva de encontrar uma vítima e um agressor, mas para ajudar a criança a resolver o problema e a sentir-se segura e protegida na escola. Isso é tão importante como a Matemática ou o Português!


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