CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 MUITO, MUITO ZANGADOS
Publicado em: 08/05/2019
O que devia interessar era a estabilidade no ensino em Portugal e o respeito mínimo pelos recursos desperdiçados que estas mudanças trazem consigo. Mas, aparentemente, nada disto entra sequer na equação.

O último relatório da Gallup, o 2019 Global Emotions Report, revela que os americanos estão mais zangados do que alguma vez estiveram. E isto apesar da retoma económica. Para muitos, a explicação está na crispação provocada pela presidência de Donald Trump, e pela desilusão crescente com políticos e decisores.

Os ingleses estão na mesma. Desde o referendo ao Brexit, e perante a incapacidade manifesta de se encontrar uma solução para o imbróglio em que se meteram, o stress e a ira aumentaram. Provavelmente, refugiam-se mais do que nunca nas previsões meteorológicas, seguindo a sábia recomendação de que mais vale falar do tempo do que de política ou religião.

A nós, nem o clima nos salva. Depois da trágico-comédia do fim da semana passada, suspeito que uma sondagem revelaria um país de mãos na cabeça perante a demonstração da mais clara inépcia dos partidos da oposição, que foram capazes de transformar o lobo no cordeiro. António Costa passou a vestir a pele de consciencioso zelador da paróquia, como se não tivesse revertido empresas, cooptado buracos orçamentais, criado o caos na saúde e nos serviços públicos com o fim das 35 horas, que anunciavam o suposto virar da página da austeridade. De um momento para o outro, mesmo os portugueses que se opõem ao seu Governo e política tiveram de lhe dar razão. Sobrando-lhes apenas a irritação perante aqueles que por inépcia traíram a sua confiança.

Decididamente os barómetros da Gallup não poderão deixar de registar como os sentimentos negativos dos portugueses estão ao rubro. Aqueles que acreditaram que Costa ia favorecer os professores estão furiosos; os que depositavam na oposição a esperança de que os defendesse de mais "contas caladas" espumam de raiva, e uns e outros estão hoje mais seguros de que, afinal, os políticos são todos iguais. Igualmente mau, que a esperteza saloia parece ganhar sempre às convicções.

Mas o surto de ensandecimento não se limita à questão dos professores. Anuncia-se também a reversão do acordo ortográfico, aquele que há uma década as crianças aprendem na escola, o dos manuais e dos livros que leem.

Não importa se a ortografia nova é melhor ou pior do que a antiga, se a decisão de o implementar foi absurda, nem tão-pouco a frustração que provoca no conhecido intelectual Jair Bolsonaro, que já incluiu o AO na cesta das coisas de que se quer livrar (a par das tomadas de três pinos e das urnas eletrónicas) - o que devia interessar era a estabilidade no ensino em Portugal e o respeito mínimo pelos recursos desperdiçados que estas mudanças trazem consigo. Mas, aparentemente, nada disto entra sequer na equação.

Pensando bem, pouco importa, porque assim como assim os miúdos também não vão ter aulas. Pelo menos para breve. Porque não é preciso ser vidente para prever o regresso das infindáveis greves, quando os professores perceberem que nunca vão receber a reposição que absurdamente, é preciso dizê-lo, pretendem. Pela simples razão de que ou não é aprovada, ou não lhes vai ser paga. Greves que vão inflamar os pais, e quem tem dois dedos de testa, e lá ficaremos todos ainda mais zangados. E, sobretudo, mais céticos e amargos que era tudo o que não queríamos.