CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 ENSINAR-LHES A COMPAIXÃO (POR SI PRÓPRIOS)
Publicado em: 01/10/2017
No Natal passado o meu marido ofereceu-me quatro bilhetes para o Quebra Nozes, dançado pelo Ballet Russo no Coliseu dos Recreios. “É para levares contigo quem mais quiseres”, disse-me, mas excluindo-se logo à partida. Quando lhe anunciei que tinha escolhido as gémeas, então com seis anos feitos há pouco, percebi que torceu discretamente o nariz, os bilhetes eram caros e temia que não aguentassem um espetáculo à noite e previsivelmente longo. Entendi os riscos mas não havia volta a dar, porque A) eram as pessoas com quem mais me apetecia ir — o prazer de assistir às suas primeiras vezes é irresistível e B) são elas as bailarinas e as ginastas, talvez até estivessem em melhores condições do que eu para apreciar aquela noite.
Por isso fomos, juntando a Ana à equipa. Jantámos fora num restaurante a sério, e uma vez no Coliseu sentámo-nos nos lugares fabulosos de onde se via o palco sem esforço. E elas, deliraram com cada salto e pirueta, com a música e os fatos e foi uma daquelas aventuras que nos vai ficar na memória.
Mas no regresso, a Carminho recordou com espanto que uma das bailarinas deixara cair o leque, mas continuara como se nada fosse. Para uma criança perfecionista e tímida como ela é, que por natureza (não pode ser outra coisa!) suporta mal errar, ver ao vivo uma grande bailarina a lidar com uma falha e perceber como afinal objetivamente não punha em risco a qualidade da sua atuação, era uma enorme lição.
O desabafo levou a Ana a constatar que por todas as razões, mas também por esta, as crianças precisam mesmo da cultura ao vivo, por oposição às representações editadas e perfeitas que a televisão e o cinema lhes oferecem. Nas versões no ecrã, seja ele pequeno ou grande, não há contratempos, não há passos falsos nem deslizes, o que torna ainda mais duro aceitar falhas quando, seja no teatro da escola, no espetáculo da academia de dança, no torneio de futebol ou na prova de natação as coisas não correm exatamente como sonhadas. E se algumas crianças aceitam bem esta discrepância entre o imaginado e o real, há de facto algumas que a sentem como insuportável.
Quando são os filhos ou os netos dos outros invariavelmente apontamos o dedo aos pais, acusando-os de serem demasiado exigentes e severos, de pressionarem os filhos para que se tornem nuns cavalinhos de corrida mas quando acontece “em casa” depressa percebemos que há características de personalidade que nos ultrapassam completamente. E os gémeos idênticos, são a prova dos nove!
Contudo se não podemos culpar-nos nem pela timidez das nossas crianças, nem pela forma feroz com se policiam a si mesmas, já é possível dar o nosso melhor para que não só entendam que só o erro nos permite aprender, como que o bom é inimigo do óptimo e por ai adiante, mas sobretudo que devem ter mais compaixão para consigo mesmas. E isso (de novo) só se aprende pelo exemplo. Da boca para fora podemos pregar os mais fantásticos sermões, e até ser de uma generosidade imensa com os nossos filhos e netos, mas eles espreitam muito para além das palavras. Ou seja percebem perfeitamente que, regra geral, somos de uma exigência insuportável connosco mesmos.
Não tenho dúvida nenhuma de que se não nos mudarmos por dentro, não temos grandes hipóteses de os mudar a eles.
Não é nada fácil, mas vale a pena tentar, na certeza de que essa é mesmo daquelas heranças que valia a pena deixar-lhes.
Quanto ao meu marido, coitado, este ano lá terá de voltar a embrulhar quatro bilhetes para o ballet, porque nenhuma de nós as quatro está disposta a abrir mão de direitos adquiridos.